terça-feira, 23 de abril de 2013

Carnavais de São Paulo

Ruth Guimarães

Carnaval é o assunto principal, por esses dias. Vi, num programa de TV, no cenário cheio de horrendas fantasias (algumas nem tão horrendas assim, vamos e venhamos), uma homenagem ao Zé, que morreu há mais de treze anos e ainda é chorado. Pessoas contavam suas experiências e sua mágoa, e cantavam com uma bossa extraordinária as músicas do Zé . Enquanto viveu, todos riram, em torno dele, e agora que se foi, à sua lembrança ainda se chora, entre os risos da folia que a mim parece profundamente triste. O Zé, tão simples, tão sincero, tão verdadeiro, na sua brasilidade incontestável. Creio que em qualquer parte do mundo onde ele estivesse, os que conheciam nossa terra e nossa gente diriam: é brasileiro. E no mais, eu vi nesse programa que o carnaval de São Paulo está profissionalizado, que nossas escolas de samba podem competir com a Mangueira, a célebre, a falada, a eterna. Pode ser. Depois que soube de braços amputados crescendo vivos de novo, de coração de moça batendo na arca do peito de um velho, de mulher de sessenta anos virando brotinho de vinte, não duvido de mais nada. Pode ser. Mas será preciso uma boa reviravolta para que o paulistano macambúzio- que já deu bandeirante enfarruscado preador de bugre e construtor de cidade – esse povo esbaforido, sacrificado, vá para as ruas, de minissaia e cabeleira, príncipe ou índio, pular de dia e de noite, como se pula no Rio.

O paulistano é homem de planalto, emburrado, o carioca o praiano, gozador. Ainda se se tratasse do santista, vá lá, que o nosso caiçara tem a maneira de ser dos que nasceram diante do largo mar aberto, como um convite à aventura e à alegria. Eu vi sim, o desfile das escolas de samba, a Vai-Vai, a Nenê da Vila Matilde, vi os passistas da Acadêmicos do Tucuruvi, tudo muito bonito, muito autêntico, e observei uma coisa, mas antes vou contar outra. Há uns cinquenta anos, vênetos e napolitanos habitavam a Santa Cecília. Eram todos pedreiros e pintores de parede, e ao calor de paixões rápidas e fervuras passageiras, sangue aquecido com o bom vinho, matavam-se às vezes uns aos outros. Outras vezes a coisa só se resolvia com esbórnias memoráveis, vivas ao Palestra Itália, partidas de padrone & sotto. Os calabreses habitavam o Brás. Esses punham cadeiras nas calçadas, à tarde, assistiam à noite aos espetáculos de Nilo Nelo e do Tito Schipa. Também torciam para o Palestra e trocavam vassouradas e socos nos cortiços da Caetano Pinto. No carnaval, tomavam parte nas batalhas de confete da avenida Rangel Pestana, e faziam o corso, em berros formidáveis, em pé nas baratinhas de capota arreada, exibindo o peito e braços cabeludos como de macacos, e olhos negros de turco. Nas quatro noites da folia, iam todos para a rua. As famílias participavam. Mas o paulistano, neto de bandeirantes, assistia.

Agora a observação de hoje, do carnaval de hoje, da animação de hoje, tirante a animação artificial emprestada pelos dinheiros públicos. Um outro elemento, como antes o italiano, faz sozinho o carnaval paulistano: o negro. Ele é o que dança na rua, com um ar hierático ou místico, sei lá, vivendo o que parece um êxtase, magro, alongado, olhos no fundo, sustentado por uma impressionante energia nervosa, sacolejando ao ritmo marcado por tamborins, pelos pandeiros, pelas cuícas, pelas frigideiras. Quem assistiu aos jongos nas noites imensas, aos moçambiques nas festas religiosas, às congadas, onde se gritam os autos mais absurdos com entonação de reza, estará familiarizado com esse ar sério, assombrado, atuado, do negro que dança com tristeza. Que escolheu o carnaval para mostrar quanto se sofre nesses cortiços, nessas barras-funda, nesse Bexiga de porões apinhados, nessa São Paulo de muito aguentar. O carnaval me parece uma festa profundamente triste.

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