sexta-feira, 26 de abril de 2013

Como antigamente

Ruth Guimarães 

Petronius Arbiter, escritor e poeta do primeiro século da nossa era, escreveu o romance Satiricon, um dos mais curiosos documentos da literatura latina. Foi governador da Bitínia, sob o imperador Nero. Revelou qualidades excepcionais de administrador, tendo exercido o cargo com justiça e energia. Voltou todavia para Roma, onde se entregou a uma deliciada existência de prazeres e ociosidade. 

Amava a beleza, o amor, a força, a boa leitura, a Poesia, as pedras preciosas, os belos estofos. Extasiava-se diante das obras primas, comoviam-no os vasos de fino lavor, as esculturas, as mulheres bonitas. Afirmava que essencial a uma vida plena é a harmonia do corpo e do espírito. Entregava-se aos prazeres sensuais. Perfumava as espáduas no elaostesium, após o banho. Coroado de rosas, reclinava-se para comer esquisitos manjares, servidos por adolescentes vestidos de amores. Em taças com altos relevos de folhas de hera, bebia vinho. Durante o repasto, cantores de Antêmio entoavam o hino a Apolo. 

Não é preciso dizer que Petronius era riquíssimo e que Nero o invejava. Tinha, além disso, na corte, muitos inimigos que os seus triunfos, a sua elegância lhe granjeavam. Por intrigas de Tigelino, incorreu no desagrado do imperador. Sua morte foi decretada. 

Prevendo sua prisão, Petronius organizou um festim e convidou os augustinos residentes em Cumas. Passou horas escrevendo. Depois tomou banho e se vestiu com o auxílio das vestiplícias. Mandou trançar coroas de rosas para os convidados. As salas foram iluminadas com globos de vidro da Alexandria. Dançarinas de Cós volteavam pelas salas. Em meio ao festim, Petronius chamou o médico e mandou abrir as veias. Olhou pensativamente o sangue que corria e fê-lo estancar. Daí a uma hora, mandou novamente abrir as veias. Dizia que a morte era doce, que não doía e que apenas uma névoa começava a envolvê-lo. Reclinou a cabeça no regaço de Eunice, a escrava favorita. 

Os cantores anunciavam o hino de Anacreonte. Petronius falou, sorriu, bebeu vinho. Atirou no chão o lindíssimo vaso de Mirrena que sabia cobiçado por Nero. E assim morreu. 

Entre nós, em tempos românticos e não românticos, a morte acontecia com uma solene tranqüilidade. Devagar. Bem comemorada, por assim dizer. Na cama era o lugar em que mais se morria. E as guerras? Lá era o corpo-a-corpo, só uns tirinhos de escopeta, sem aviões, sem truques, sem armas nucleares. Assim mesmo houve guerra que durou cem anos. O que morria de cavalos! No mais, era a cama. Parentela pisando em pontas de pés. Na penumbra, orações murmuradas, lágrimas, a vela acesa nas mãos do agonizante, e Ela chegando, a indesejada das gentes. O homem sozinho. Ela devagar. Tinha-se dignidade. 

Hoje a morte é por atacado. Barata e rápida. Nos corredores de hospitais, na rua, na fila do INSS. Por ordem do PCC. Rapidamente, em multidões, atropelamentos, bombas, furacões, tufões. Rapidamente. 11 de setembro. Mortes resultantes de descuido, de mau governo, de corrupção, de fome, de falta de segurança. 

E aquelas mortes, diante de médicos, dando ordens sussurradas a um batalhão de enfermeiras, para virem enfim nos dar a grande nova: Fizemos tudo que pudemos. 

Ah! não se morre mais como antigamente!...

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