Ruth Guimarães
A primeira vez que um elogio me confundiu e me emocionou, deu-se no Museu da Casa Brasileira, quando lá estadeava Ernani Silva Bruno, meu chefe. Eu entrava e saía quando queria, era de casa, mas não sei porquê, naquele dia, inventei de bater na porta aberta da sala, na brincadeira. Sala clara, sol nítido, livros por toda a parte. E quando bati, a voz de barítono de Ernani se elevou fortemente, boa, alegre: Entra, Irene!
Ele sabia que eu entenderia, porque o Bandeira, ah! o Bandeira...
Outro elogio, também secreto, havia ocorrido algum tempo antes do Água Funda, na redação do defunto Correio Paulistano, de saudosa memória. Levei lá uma crônica falando de junho e dos balões, porque era junho. Muito eivado de lembranças do Omar Kayyam, que não sei se é assim que se escreve. E fiz questão de entregar aquela coisa nas mãos do redator-chefe. Abner Mourão me recebeu cortesmente, com uma ruga entre as sobrancelhas, que as tinha cerradas, recostou-se na cadeira de modo ostensivo, como quem dissesse: Não me aborreça por muito tempo; e começou a ler.
Jamais eu tinha conversado com um escritor famoso antes desse dia, e não saí correndo ainda hoje não sei porquê.
Abner Mourão não sorriu, não tentou ser agradável. Apenas perguntou assim meio rabugento:
- Foi você mesmo que escreveu isto aqui?
Assim, isto aqui. Insensível ao que havia de ofensivo na pergunta, eu me apeguei ao você mesmo, ou mesma, tanto se me dava. E ri com todos os dentes. Os anjos tocaram milhões de campainhas no céu e eu consegui sobreviver, para escrever outras coisas.
Você conheceu Mário Donato. Contou-me o Marcos Rey que, em certa ocasião em que Donato lia qualquer coisa que eu havia escrito, em algumas passagens levantava os olhos do livro, ou jornal, fosse o que fosse, e falava meio raivoso:
- Oh! negra desgraçada pra escrever.
Como vê o amigo, tenho experiência de certos elogios escamoteados, mas espontâneos, umas deixas meio que sem intenção. Mas que suscitam bem no fundo do meu entendimento e da minha vontade um poderoso alento, e então, depois de “rir para o meu coração bem simplesmente” escrevo e escrevo.
Não quero continuar contando o que falaram de mim, que isso é muito feio. Mas quero lhe contar que somente hoje recebi uma cópia do seu discurso de recepção do acadêmico Gabriel Chalita, na Academia Paulista de Letras. E ali você disse abertamente que a minha prosa é límpida. Uma palavra só que me transportou aos mais altos páramos, proposital, comovedora, viva, fulgurante. A minha apoteose, em salão aberto, num cenáculo, onde estadeia a fina flor da intelectualidade paulistana. Vem-me a vontade de ser cabotina. De falar em inclito e preclaro.
Deixa pra lá!
Juro por Deus que o que mais quero é acreditar nesse discurso de poeta. Meu poeta.
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