sexta-feira, 26 de abril de 2013

Campo de Lírios

Ruth Guimarães 

Difícil é contar com palavras o que não necessitou de palavras para ser revelado. Pobres, ineptas palavras, que servem para complicar o pensamento e cortar as asas do sonho. Pois nessa história do que fato, nela assoma a consciência de viver, mal desabrocha imprecisa ainda e muito tema e bela e doce a flor de um rosto. O que me contou primeiro (primeiro? Não. Já reparara nos olhos onde a luz da infância principia de adoçar em ternura, numa sombra suavíssima. Já reparara nas mãos que têm gestos lentos e seguram com movimentos novos, parece que num reconhecimento. Que agarram, um pouco ávidas, de que? Por que anseiam? E na boca lábios entreabertos, ansiosa ou expectrante, ou ambas as partes a um tempo, quase doloroso, onde o amuo cede inesperadamente ao sorriso, onde a tristeza não parece infeliz e o sonho e tão comovente. E na meditação em torno de nada. E na voz que falha como num choro. E na face onde tanto o conhecimento como a ignorância se resolvem em rubores. E uma (esquivancia) esquivança, um, um recuo, um querer-não-ser, já começando a ser. Nessa instabilidade que me atinge muito mais do que confesso com sua inconcebível oscilação emocional, eu também vi e não vi). É nessa meia-luz, nesse meio reconhecimento e nessa meia-verdade, nessa terra de ninguém entre ser e o não-ser, que penetrei num rápido instante-luz tão instantâneo, que, quando voltei entre o tatalar das asas do anjo, e o cerrar das portas dos sete céus, ainda deu tempo de aparar a jarra de prata, antes que a água derramasse. O que me contou primeiro, pois, todas essas coisas que eu já sabia sem saber, foi o tom com que o esguio adolescente exclamou: quanta coisa bonita! Eram apenas quinquilhantes da irmã, brincos azuis e amarelos, colares, um par de abotoaduras, pedras montadas em garras douradas uma correntinha, a delicada medalha, broches, pulseiras, uma flor de cetim, plástico, madeira, vidro, vidrilho, nada. E aqueles dedos distraídos do adolescente que eu vira e não vira, de leve mas desajeitadas, como que numa carícia que ousa e recua e treme e avança, tão pávida e temerosa do mistério da vida, ai vida! E o mundo lhe vem vindo ao encontro, desconhecido e tentador que pode ser tanto em seu mistério e pode resultar em nada. Que diz a voz com inflexões ansiosas, como diz tudo com essas palavras sem significação? Como dizer da importância desse minuto tão desimportante? E como contar de relâmpago, dos sete céus e da jarra de prata? “Põe-me como selo sobre o teu coração, como selo sobre o teu braço, porque o amor é forte como a morte, duro como a sepultura, o ciúme; as brasas de fogo, são veementes labaredas”. E o adolescente, dependendo tanto dessa mulher, que ainda vai ser amada.

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