segunda-feira, 22 de abril de 2013

Cada um morre sua morte

Ruth Guimarães

Um médico, cheio de compaixão pelos seus clientes, apavorado foi ao discípulo Na-in, de Gautama, o Buda, pedir que o ensinasse como se domina o medo de morrer.

- Os meus pacientes choram, desesperados. Alguns agarram-me as mãos e as vestes, outros olham-me alterados. Cortam-me o coração. O que pedem claramente com os apertos de mão, com o pranto a rolar pelas faces, com os olhares implorantes, com a expressão a cada momento mais ansiosa, não é ajuda para terem um fim sem tristeza, um confiante descanso final. Não é verdade que a morte é apenas uma libertação desta negra vida?

- Sim, sim. A negra vida. Tens razão. – Disse o discípulo cordato.

- E então? – insistiu o curandeiro, vendo que Na-in se calava. 

- Diga-me qual é o teu ofício, filho? És profeta, sacerdote? Difundes a palavra do Senhor?

- Que é isso, Mestre? Eu, Profeta? Eu, Sacerdote? Sou apenas médico.

- Das almas?

- Não. Somente do corpo.

- Estás sereno, talvez?

- Como posso estar sereno se sofrem os que estão dependendo de mim? E então? Vais me ensinar a conjurar o medo que sentem da morte os moribundos?

- Pelo teu gesto febril, por teu olhar, por tua fala inquieta e exigente, oh aprendiz de feiticeiro! vejo que não estás sereno. Por que tremes? Por qual motivo a tua respiração é um estertor? Estás morrendo com teu cliente? Alguém já disse que o homem morre sozinho. Cada um morre sua morte. Limita-te, oh curandeiro! a tirar as dores físicas do teu cliente. Daqui a séculos alguém dirá: sapateiro! não passes das chinelas!

- Mestre! É-me vedado consolar esses que se confiaram às minhas mãos?

- Se queres dar-lhes serenidade – pontificou Na-in – boa coisa tu fazes, mas busca-a primeiramente para ti mesmo. Não consumas tua vida no esforço, vão, de dar o que não obtiveste. Tu te valorizas. Tu te super-estimas. Em vez de cuidares de ti mesmo, cuidas do próximo. Quem te disse que deves dar aos outros a serenidade? Cuida de SER e não dos seres!

- Como? – secundou o médico desarvorado. – Cuida dos outros quando já tiveres te encontrado. Com a tua profissão de médico, ajuda! Compadece-te! Trata das dores do corpo. Por que viver agonias alheias? Cada um é o que é, viveu por e para si e irá morrer sua morte.

- Como assim, Mestre? Ainda não entendi...

- Eu explico. A terra nos dá de tudo e mata a nossa fome de mil maneiras. Esta é a qualidade da terra: uma convém à vinha, outra à oliveira. Uma dará cereais, outra a cana, outra a romã, outra a goiaba. O homem tem que se adaptar a inúmeros caracteres. O que convém a ti? Mal sabes e queres providenciar o que convém a outros.

- Se é difícil te conheceres, o que não será conheceres os teus clientes, cada um é um na multidão heterogênea que serves.

O curandeiro baixou a cabeça e Na-in passou, serenamente, imperturbável.

Lendo esta fábula do discípulo de Gautama, lembrei-me de ter visto nas livrarias, nestes últimos tempos, dezenas de livros de ajuda e auto-ajuda. Quantos Sócrates neste mundo, ensinando a viver e talvez ensinando a morrer.

Como se para isso houvesse receita.

Botelho Netto

Nenhum comentário:

Postar um comentário