segunda-feira, 22 de abril de 2013

As cidades perdidas

Ruth Guimarães

Vazias, desertas com um ar antigo e sossegado, parecem velhinhas modorrando ao sol. Continuamente, o êxodo dos filhos as enfraquece e lhes apressa o fim. A consumação final é lenta, imprevisível, há muita vida contida nelas. 

No Brasil não há casas de pedra, não há cidades de pedra. Quando começa a desagregação, as paredes se desmoronam, cai o telhado pelo apodrecimento das vigas, esbarrodam-se os tijolos de adobe. A água das chuvas lava e lava as ruínas. Aos poucos o mato invade exuberante , o que restou: caruru-de-porco, de agressivos espinhos, a flexível guanxina, o mato-de-mamangava, maria-pretinha, juá-espinhento, mamona, arranha-gato e amor-seco-do-campo. Depois, vem o melãozinho-de-são-caetano e trança os galhos, embolando tudo numa trouxa verde, que dá o que fazer, para destrinçar. Por cima, como uma coroa dourada, o cipó-sumo. Se a cidade for na várzea, perto de rio, riacho, ribeiro, brota a ouricurana verde e alaranjada, em pouco, árvore de galharia esparramada, o maracujá-roxinho sobe por ela, o maracujá-guaçu, o ingá, a goiabeira se animam e crescem viscosos, forra o chão o capim-membeca, mais para a beira da barranca se instalam o bastão-de-são-josé, com as braçadas brancas das palmas, e mais a banana-do-brejo, a canarana, cana-do-brejo e chapéu de couro. A corruíra vem e faz ninho no ramo ainda novo do araçá. A quijara e o sapo-untanha e o sapo-boi praticam boa vizinhança, foi, não foi, foi, não foi. Cobra coral e jararacuçu se enroscam e dormitam, só despertando quando passa junto delas, aos pulos a preá, que é bom petisco e era uma vez uma preá. 

Era uma vez uma cidade.

Botelho Netto
Foto de Botelho Netto
 Muitas ficarão por muitos anos ainda, talvez mais um século, um estágio acima dessa desolação. Têm o ar de velhinha doce, quando se embala na rede de embira. Têm os prédios antigos, lindos coloniais, com os janelões imensos e um mistério, um silêncio, uma paz, um rio que desliza muito manso, uns verdes em torno, à espreita, e uma gente que fala cantando sem pressa. Lá pra trás, fica a serrania nos longes, Serra-do-Mar. Antes de chegar, numa estrada que é direitinho uma sacarrolha, está o ponto mais alto da região, no espigão que é um esplendor. A cidade é boca de sertão. E, sendo boca de sertão, é um escoadouro de produtos sertão-dentro, um ponto de encontro de roceiros calados, vindos de fins-de-mundo, de grotões desertos, de vertentes onde-judas-perdeu-as-botas. 

As coisas que esses homens e mulheres silenciosos aprenderam! Como sabem tecer e trançar balaios e esteiras e redes de covos e cestas e peneiras. E modelar o barro, como oleiros, primitivos afeiçoando-o a modos de vasos e panelas, de figurinhas de presépio, de caxixi, espécie de miniatura de vasilhas de barro, são muito apreciadas nas cidades, para servirem de cinzeiro e de enfeites. E pelas crianças então, lá mesmo no povoado sossegado, nem se fala.
Botelho Netto
Foto de Botelho Netto
Dia de semana, o mercado é um deserto. O piso quebrado, um chafariz todo de ferro, caído a um canto, um ar de abandono. Dia de “saúdo”, ou ainda de domingo, vira formigueiro, de formiga corrução que é a mais desinquieta. Enche de gente que é um despropósito uma “imundícia”. Em torno dele, os burros filosofam de manso mastigando milho do bornal. Os jacás e balaios vêm cheios de cada coisa engraçada, gente! Tanta coisa engraçada e fora de moda aparece, vinda do sertão. A burrada com as bruacas, e os serigotes. Tropeiro de panelinha de três pés. Umas velhinhas e umas mulheres mais novas sentadas no silhão de banda. O balaieiro fica de cócoras negociando. A matutada faz compras para a “somana”. Hora de voltar enche-se o ônibus de sacos muitos alvinhos, cheios de mantimentos, amarrados com barbante. 

Chegar a essas cidades é como ter viajado no tempo para trás. Ainda estão ali, com a mesma feição e as mesmas cores, o casarão de cem anos, e outros sobrados, subindo cansadas ladeiras. E aquela rua calçada de grandes pedras irregulares. Como o seu avô ou bisavô, há cem ou duzentos anos, a oleira Antoninha Mulata modela o barro; como seu avô bugre, o balaieiro corta o bambu e trança as peneiras; como a sua gente sertaneja, Benedito Corote tece a palha. Clemente Santeira trabalha a tabatinga para fazer os santos. Esta introduziu um elemento novo, incongruente, na técnica dos santeiros: com um grampo de cabelo, um grampinho moderno desses pequenos de aço, pintados, ela retoca o barro, e faz o acabamento e o trabalho mais fino, conformando as feições da imagem.

Botelho Netto
É desses artesanatos, velhos como o homem no mundo, que vive muita gente na velha cidade. Duvido que qualquer desses artesãos saiba que mataram Kennedy, que nomearam o costureiro de Maria Tereza, que os agitadores armaram confusão, que há uma tal de lei agrária. É capaz que nem saibam se os Estados Unidos ficam pra cá ou pra lá de Taubaté. 

Não vivem menos nem pior por isso. 

Trazem-nos a pureza, o encanto, o indescritível encanto das artes primitivas.

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