Ruth Guimarães
Vazias, desertas com um ar antigo e sossegado, parecem velhinhas modorrando ao sol. Continuamente, o êxodo dos filhos as enfraquece e lhes apressa o fim. A consumação final é lenta, imprevisível, há muita vida contida nelas.
No Brasil não há casas de pedra, não há cidades de pedra. Quando começa a desagregação, as paredes se desmoronam, cai o telhado pelo apodrecimento das vigas, esbarrodam-se os tijolos de adobe. A água das chuvas lava e lava as ruínas. Aos poucos o mato invade exuberante , o que restou: caruru-de-porco, de agressivos espinhos, a flexível guanxina, o mato-de-mamangava, maria-pretinha, juá-espinhento, mamona, arranha-gato e amor-seco-do-campo. Depois, vem o melãozinho-de-são-caetano e trança os galhos, embolando tudo numa trouxa verde, que dá o que fazer, para destrinçar. Por cima, como uma coroa dourada, o cipó-sumo. Se a cidade for na várzea, perto de rio, riacho, ribeiro, brota a ouricurana verde e alaranjada, em pouco, árvore de galharia esparramada, o maracujá-roxinho sobe por ela, o maracujá-guaçu, o ingá, a goiabeira se animam e crescem viscosos, forra o chão o capim-membeca, mais para a beira da barranca se instalam o bastão-de-são-josé, com as braçadas brancas das palmas, e mais a banana-do-brejo, a canarana, cana-do-brejo e chapéu de couro. A corruíra vem e faz ninho no ramo ainda novo do araçá. A quijara e o sapo-untanha e o sapo-boi praticam boa vizinhança, foi, não foi, foi, não foi. Cobra coral e jararacuçu se enroscam e dormitam, só despertando quando passa junto delas, aos pulos a preá, que é bom petisco e era uma vez uma preá.
Era uma vez uma cidade.
Muitas ficarão por muitos anos ainda, talvez mais um século, um estágio acima dessa desolação. Têm o ar de velhinha doce, quando se embala na rede de embira. Têm os prédios antigos, lindos coloniais, com os janelões imensos e um mistério, um silêncio, uma paz, um rio que desliza muito manso, uns verdes em torno, à espreita, e uma gente que fala cantando sem pressa. Lá pra trás, fica a serrania nos longes, Serra-do-Mar. Antes de chegar, numa estrada que é direitinho uma sacarrolha, está o ponto mais alto da região, no espigão que é um esplendor. A cidade é boca de sertão. E, sendo boca de sertão, é um escoadouro de produtos sertão-dentro, um ponto de encontro de roceiros calados, vindos de fins-de-mundo, de grotões desertos, de vertentes onde-judas-perdeu-as-botas.
Foto de Botelho Netto |
As coisas que esses homens e mulheres silenciosos aprenderam! Como sabem tecer e trançar balaios e esteiras e redes de covos e cestas e peneiras. E modelar o barro, como oleiros, primitivos afeiçoando-o a modos de vasos e panelas, de figurinhas de presépio, de caxixi, espécie de miniatura de vasilhas de barro, são muito apreciadas nas cidades, para servirem de cinzeiro e de enfeites. E pelas crianças então, lá mesmo no povoado sossegado, nem se fala.
Foto de Botelho Netto |
Chegar a essas cidades é como ter viajado no tempo para trás. Ainda estão ali, com a mesma feição e as mesmas cores, o casarão de cem anos, e outros sobrados, subindo cansadas ladeiras. E aquela rua calçada de grandes pedras irregulares. Como o seu avô ou bisavô, há cem ou duzentos anos, a oleira Antoninha Mulata modela o barro; como seu avô bugre, o balaieiro corta o bambu e trança as peneiras; como a sua gente sertaneja, Benedito Corote tece a palha. Clemente Santeira trabalha a tabatinga para fazer os santos. Esta introduziu um elemento novo, incongruente, na técnica dos santeiros: com um grampo de cabelo, um grampinho moderno desses pequenos de aço, pintados, ela retoca o barro, e faz o acabamento e o trabalho mais fino, conformando as feições da imagem.
É desses artesanatos, velhos como o homem no mundo, que vive muita gente na velha cidade. Duvido que qualquer desses artesãos saiba que mataram Kennedy, que nomearam o costureiro de Maria Tereza, que os agitadores armaram confusão, que há uma tal de lei agrária. É capaz que nem saibam se os Estados Unidos ficam pra cá ou pra lá de Taubaté.
Não vivem menos nem pior por isso.
Trazem-nos a pureza, o encanto, o indescritível encanto das artes primitivas.
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