Ruth Guimarães
Em se tratando de folclore, é lógico e evidente que devamos situar no tempo e localizar os fatos, no espaço delimitado. Isto vale para todas as pesquisas. No entanto, para certas ocasiões, a minúcia desse enquadramento chega a ser extravagante.
Sou de uma época em que comer bacalhau não dava Ibope. Que vexame se estivéssemos à mesa e chegassem visitas inesperadas, razoavelmente íntimas, levemente fofoqueiras, diante das quais gostaríamos de brilhar; na mesa aquele revelador bacalhau com batata ou com abobrinha verde, seu indefectível acompanhante. Em verdade, era muito constrangedor. Então a gente oferecendo o de-comer, e ao mesmo tempo se desculpando: comida de pobre, bacalhau...
Eram três as outras variedades, na sexta-feira da Paixão: lambari de que o Paraíba era pródigo (e lambari frito era o manjar dos deuses), bacalhau da Noruega na Semana Santa, revalorizado com os acessórios na travessa, incluindo camarão, azeitona e palmito. Traíra, prato de rei. Frita, cheirosa, branca, malgaxe... E a manjubinha, extra, vinda não sei de onde, em grandes barricas, um peixinho seco, salgado, bom tira-gosto para a cachaça de alambique.
Entretanto, o que resistiu ao tempo, de tantas usanças de antanho, foi a humilde paçoca de amendoim. De etiologia indígena, socada no pilão, chantou um pé firme na culinária valeparaibana, e não tardou a se acomodar às novas técnicas. Já se comeu paçoca feita na máquina de moer carne, uma trabalheira danada para misturar os ingredientes, e dizem que não fica tão homogênea. Alguma dona de casa não tendo à mão o pilão tão jeitoso de socar, ou achando que tem que se modernizar, usa o liquidificador. Deus do céu! Como fica engraçado juntar essas duas palavras: paçoca e liquidificador!
Todo o Vale do Paraíba está a par das técnicas do fazer, do distribuir e do comer paçoca, desde o torramento do amendoim, do despelar o grão, de abanar em peneira trançada, da soca no pilão tradicional, da troca do produto (como vou explicar) até comparecer a iguaria na mesa, e ser comido com banana.
Foto de Botelho Netto |
No calendário da paçoca, o dia é a quinta-feira santa.
Nesse dia, senhores, podeis ir a qualquer uma das dez mil casas que compõem o nosso burgo e pedir paçoca que sereis atendidos. Todos os cachoeirenses a fizeram.
Também não ficareis admirados se bater em vossa porta uma pivetinha que, entregando uma vasilha coberta com um paninho bordado, vos passar este recado: “Mamãe mandou pra senhora provar da nossa paçoca.”
Já é a 4a. ou 5a. vez que isto acontece. Temos amostras: da mais morena, da mais amarelinha, da mais úmida, da mais farinhenta, da doce como mel, da agressiva, da empelotada, da grossa, da fina que é um talco. E a nossa também já andou passeando por outras casas.
Não sei de outras cidades. Na minha Cachoeira Paulista, paçoca é uma instituição.
Nenhum comentário:
Postar um comentário