Ruth Guimarães
Foto de Botelho Netto |
O rio era o rio.
Negro, o negro aço. Sem revérberos, sem luz, sem lambaris. Ah! sem luz! Ah! sem seus peixes de prata!
Nas águas sem luz, não se debruçava o céu, nem as nuvens, mas apenas o negror da sombra, entre ramagens. E era feito de silêncio o óleo espesso. E nas barrancas o ermo começava, prolongando-se indefinidamente pelas margens desertas.
Havia uma ponte. Havia uma ponte, sem ninguém.
E havia uma árvore. Muitas árvores sem pássaros.
E havia um caminho. Longo. E havia um caminho sem caminhantes. Poeirento. Escuro. Com pedras pontudas e terrões de ásperas arestas. As plantas, o mato, eu vi e dei-lhes os nomes que eu sabia. Amor-seco e picão, e arranha-gato e dormideira. E juá venenoso. E fedegoso. E cardo. Maçã de lobo, eu vi. Veneno poderoso, de fazer bolinha para matar cachorro danado. E palmas de satanás, eu vi. E galharia seca de velhos angicos assombrados.
Eu vi os animais e dei-lhes os nomes que sabia: ratazana do campo, de presas temíveis, em pulos tortos pelo capim castigado da soalheira. E quijara do banhado. E negros escaravelhos de mil patas negras, avançando devagar, entre excrementos.
Pois eu não sei o que houve.
Quem chegou com olhos de luar e boca de tâmara madura?
O rio ainda é (negro) o mesmo rio. Negro como o negro aço, mas com gritos de luz em cada onda, onde o sol se esparrama e cintila e salta, coriscando. E onde uma lavandisca escreve hieróglifos, riscando a água. E onde o martim-pescador de longo bico sacode as asas de luz para todos os lados. Está tão claro o rio que se vêem no fundo os lambaris de prata, de rabinho vermelho. Relâmpagos se cruzam quando as marrecas se perseguem aos gritos sobre as águas, as marrequinhas brancas de penas verdes cintilantes nas pontas das asas. O céu de fundo d’água nem pode parar, numa tremura que lhe comunica o sol.
Deslizam nuvens no céu e no rio, formando castelos e carneirinhos. E naquele campo de mato enredado, que houve com ele? Por que está lindo assim, com uma vida assim, e com essa alegria? Será porque a rosinha maldita espiou alva e leve entre a folhagem e os sapinhos? Será que o juá penugento se enfeitou de bolinhas amarelas? Será porque um casal de namorados se debruçou numa ponte sobre a grade rústica e espiou com olhos de ternura as voltas do rio?
Será porque uma criança agarrou um besouro cascudo e o achou tão engraçado, tão liso e tão brilhante e com tantas pernas?
Se tantas coisas que ali estavam ontem e hoje, por que apareceram ontem as horríveis, e aparecem hoje as belas?
Foto de Botelho Netto |
O rio era o rio e era a ponte aquela ponte, e era este mato aquele mato, na árvore estava o pássaro, na manhã a luz, no silêncio a beleza, para quem tinha olhos de ver, e ouvidos para ouvir.
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