Ruth Guimarães
Foto de Botelho Netto |
A cidade não é tão antiga assim. Não nasceu da pisada do pé do bandeirante, que, “como um deus, fecundava o deserto”. Veio mais simplesmente, surgida em ponta de linha, e por esse irrisório motivo não entramos na saga bilaqueana.
Não é tão antiga. Zé Rodrigues, (avô da Antoninha do Prata), que vai fazer 105 anos no mês que vem e ainda proseia com seguimento e acerto, lembra quando isto aqui não passava de um arraialzinhho com 18 casas e a capela de Santo Antonio da Bocaina, no morro. A linha da estrada de ferro parara na margem esquerda do rio. Junto dela, perto do lugar onde as águas se represavam, escachoando no meio das pedras, ficava o porto de Cachoeira. Barcaça a vapor, trazendo querosene, sal, açúcar, fazendas e remédios, abicava ali. Voltava para Lorena, sede da comarca, levando lenha. Ouvia-se, no meio do rio largo, o apito da barca às quartas-feiras. Foi mais ou menos nessa ocasião que ficou doente a filha de Manuel da Silva Caldas, português fazendeirão, dono de muitas centenas de alqueires de terra de voluta, isso num tempo em que não se temia a reforma agrária. Doença misteriosa fez a moça definhar. Passava os dias na preguiçosa da varanda, muito branca, muito ida, os longos cabelos pondo negrores sinistros na fronte pálida. Coisa para os românticos perpetrarem sonetos de amor e de morte. Diz-se que o pai fez uma promessa ao Bom Jesus da Cana Verde, para que ela sarasse. Seriam amores contrariados, que muito disso havia nesses tempos. Sabe-se que sarou, que o pai doou ao Bom Jesus uma imensidão de terra, tanta que deu para fazer a cidade. E foi construída na Margem Esquerda uma capela dedicada ao santo. Pode ser que tenha sido ele o milagreiro. Mas também pode ser que a moça e o noivo houvessem acertado a panacéia e o Bom Jesus, coitado! vai ver nem teve nada com o caso. Graças aos amores contrariados, e depois consentidos, da moça, ampliou-se a cidade. Fosse ela ponta de linha (a cidade) por mais cinqüenta anos e outra seria a nossa história, com outra imponência e outra riqueza.
Foi apenas há 71 anos que se emancipou da comarca de Lorena e passou a ter a administração da sua própria justiça.
Durante esse tempo, marcamos passo num estágio encruado, e há um bom par de anos, somos a única cidade do Vale do Paraíba a permanecer na primeira entrância. Agora saímos dela. Depois de uma campanha muito bem conduzida e eficiente, em que a cidade e os arredores foram batidos casa por casa, em que todos compareceram ao cartório eleitoral para retirar títulos, fosse agregado, leiteiro, advogado, dona de casa, velho de 70 ou moço de 18, conseguimos dar um passo adiante. A cidade festejou bem a ascensão, à maneira muitas dos festejos cívicos brasileiros. Houve foguetório, _________ bonita, comes e bebe.
“Que a justiça nesta terra”, falou ruibarbosamente o promotor, “não seja apenas a letra fria da fria lei”.
E falou também entre outros, Ferretti Filho, o vereador mais inspirado da Câmara cachoeirense. E o Meritíssimo, que exaltou mais do que merecemos, a terra em que hoje milita. Provisoriamente, pois que é esse o destino dos cavaleiros-andantes da Justiça.
Depois, houve coisa menos transcendentais. Os salgadinhos estão uma delícia, derretendo na boca, que as quituteiras desta terra são muitas e habilidosas. O martini, meio gelado, no ponto, o ponche como rubi, cintilando em copos de cristal, um arranjo de bom gosto da Sra Caetano Munhós. A grande sala que, em outras ocasiões, será solene, hoje está alegre e festiva. Daqui se vêem os decotes e as gravatas escuras. E o relâmpago dos flashes.
Alegremo-nos, irmãos, alegremo-nos no Senhor, dizia um amigo, em horas assim. Alegremo-nos! Capaz que daqui a 71 anos tenhamos outra comemoração igual, pois os caminhos da deusa cega são lentos e difíceis. A dama emperrada é lenta no castigar, lenta no subir, lenta, lenta.
Mas, alegremo-nos! Uma vez que progredimos, teremos daqui para a frente a Justiça mais rápida, mais perfeita, mais alta. Pois que agora são outras entrâncias.
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