quinta-feira, 25 de abril de 2013

Caçadores de Gente

Ruth Guimarães 

Chegamos à noite a Salvador e o impacto da doce terra estranha sobre nós agiu. A primeira manhã que passamos no refúgio da Escola de Polícia, que era também o seu, direi refúgio? Teve qualquer coisa de miraculoso. Como de tivéssemos entrando num país de maravilhas, Era assim como um regresso ao Éden, com muitos adões incongruentes de coturno e roupa caqui. Fontes não havia. E seria positivamente escandaloso chamar de maná a bóia do rancho dos oficiais. Como se sabe. Mas havia coqueiros, quantos! Comas dançarinas ao toque muito leve que vinha do mar ali perto. A areia no chão, de um cinza azulado, rechinava sob o passo. Havia arapongas nas forquilhas, tinindo, o zinido de cigarras e a zoeira dos insetos. Camaleões com rajas imitando folhas secas, olho de berilo chispando em torno da risca preta da pupila, azougue vivo, disparavam pelo meio do capim. E aí vimos as emas, Ivã Marinho, você tem que se lembrar das emas. Nos dias de desfile abriam o cortejo nas ruas, impassíveis entre as alas de povo certos no andar, marchando ao compasso das caixas de guerra. E que marcha! Digo eu, que as tive diante dos olhos quase um mês. Desajeitados, com meio corpo coberto de ásperas penas cinzentas, estão vivas e já tinha aparência de espanador. E o cômico rebolado de anca, se é que aquilo se chama anca. E o longo pescoço e o bico forte, pastando a grama do páteo? Agitavam sem rumor, às vezes, num lento espreguiçamento, o cotoco inútil das asas. Faziam parte do paraíso, pois que era ali o paraíso, com um anjo á porta não com a espada chamejante, encurvada em s, mas com um prosaico fusil tirado do corpo da guarda. Anjo baiano, mulato, devoto de Oxalá e Janaína. Sarava! Nesse quadro, os oficiais recém-formados, você individualmente mal saído da adolescência, pareciam estar representando um papel que não lhes assentava bem á demasiada juventude, á luz dos olhos ainda encantados da vida, ao rosto imberbe ou quase, ao passo ligeiro, impaciente de futuras andanças, a boca sem vinco, onde pela manhã palpitavam os beijos com que sonhavam. E em meio dessa lembrança, chega a sua carta, em que outro quadro se sobrepõe. Quadro sem paraíso: é Ivã Marinho, de chapéu de couro e roupa de mescla azul, disfarçado como um sertanejo ou como um bandoleiro, que corta as caatingas perseguindo um cangaceiro. A temperatura mata, diz você. O calor sufoca. Ah! Eu conheço a caatinga e ainda não voltei do choque que me deu: a Arida, seca, retalhada, espinhenta, agressiva caatinga de arbustos enfesados, eriçada de pontas e acúleos, Caatinga inimiga. 

Caçadores de gente. Não ouso fazer votos para que Deus os proteja e eu o desejo certamente, porque com tanta gente sem culpa, com tanta boca sem pão e tanta vida sem justiça, eu nem sei, francamente, de que lado Deus está nesses sertões. 

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