sexta-feira, 26 de abril de 2013

Amadeu de Queirós, o moço

Ruth Guimarães 

Quando Amadeu de Queirós completou oitenta anos, houve festa no Automóvel Clube e deitou fala bonita, contando como se sentem os velhos. Mas dessas coisas digo que ele não entendia. Foi chamado “Velho Amadeu” pela rapaziada que se reunia em torno dele, na Drogaria Baruel, mas devia mesmo era ser chamado Amadeu o Moço. 

Era homem de muita risada, de muita fé e de muito entusiasmo, que se fazia de pessimista. 

- Não sou inimigo nem contra a religião – pontificava gozando a cara embasbacada dos ouvintes, sérios. – Gosto de ser agradável a mim mesmo, praticando o bem sempre que posso, sem esperar recompensa. Puxava um pigarrinho, sinal infalível de que ia ficar irônico e maledicente daí pra diante. Não peço favores em troca de virtudes. Anh?! Não me lembro dos pecados. Não tenho a pretensão de ser imortal, porque acho esta vida mais que bastante. 

Descrente? Pessimista? Cético? Quem acreditava nisso? Os moços, que elogiava e animava , ouvindo-os com uma paciência franciscana, de quem corrigia os originais, e que incitava ao estudo e à boa leitura, quem acreditava nisso? Ao vê-lo, de boa paz, de boa vontade, amando muito e de coração aberto a essa moçada escrevinhadeira, quem acreditava nisso? 

- Aguentei homens e mulheres com a maior resignação – dizia. 

E quem acreditava? 

Agora que Velho Amadeu não está mais aqui pra ler, posso dizer que ele era sentimental. E poeta. Amava as árvores e os rios, lembrava com ternura a vila onde nascera, vila de mil e quinhentas almas, atrasada, com seus cirquinhos, jogos de prenda, e “assustados” ou bailinhos onde se namorava. Ali tivera um primeiro amor infeliz. Ali fora às novenas, para ver as moças. E ali amou com honesta candura a que lhe foi esposa e companheira durante cinquenta anos. 

Descrente? Pessimista? Cético? Pois sim, amando com honesta candura!... 

Aos personagens, trata com respeito comovido. Sem dureza. Com pena. E seu estilo, que ele define como sendo de monótona cadência, é antes uma suavidade mansa. Nunca era visto indignado. Só de uma coisa tinha mesmo uma ojeriza sincera. Do futebol. Não discutia futebol. Não queria saber se o São Paulo (Edgar Cavalheiro era são-paulino) não queria saber se o São Paulo tinha perdido a melhor das três, se o Corínthians estava na liderança, se o Palmeiras... 

- O jogador de futebol tem o complexo do pé. Todos os seus gestos e impulsos participam do pontapé e da marrada. 

Nesta terra de bebês-prodígio, Amadeu de Queirós começou aos cinquenta anos, quando a maioria dos literatos já está nas Obras Póstumas, digo Completas. “É que ninguém pode escapar à Lei. Talento é como o sono: quando começa cedo, acaba cedo.” 

Assistia num prédio escuro, alto, velho, na Praça da Sé, esquina com a Rua Direita, nos baixos, onde estava instalada a Drogaria Baruel. O lugar foi uma surpresa. Amadeu foi outra surpresa. Já tinha ouvido falar nele. O Grupo do Roteiro o conhecia e frequentava. 

O pessoal que formava a Roda da Baruel era composto de moços, tudo gente trabalhando, a maioria vegetando em empregos modestíssimos. Edgar Cavalheiro, grande amigo de Amadeu, era conta-correntista num banco. Mário da Silva Brito, que lembrava um viking adolescente, ainda era estudante. Fernando Góes, considerado o menino de ouro, e a grande esperança do momento (Boa Noite, Rosa!) andava de um jornal para outro. Joaquim Maciel era funcionário da Secretaria da Segurança. E vinha James Amado, e vinha Paulo César da Silva e Mário Donato e Nelson Palma Travassos, e Nelson Werneck Sodré, e Sérgio Milliet e muitos outros. Havia pracistas, empregadinhos de escritório, uns evoluíram para escritores, outros involuíram para escriturários. Tiravam umas aparas de tempo do horário do almoço, geralmente, e o movimento se tornava uma lufa-lufa, entre dez e meia e duas, um entra-e-sai, um falatório. Alguns fregueses olhavam espantados, fazendo com as sobrancelhas a muda interrogação. E então, mudamente também, os balconistas encolhiam os ombros, pois que sabiam eles daquele atropelo todo, daquela falação, daquela algazarra? Numa ocasião um dos caixeiros da drogaria, tendo surpreendido não sei que conversa, e tendo entendido sabei-me lá o que, informou a um comprador, num sussurro de inconfidente: “são maçons...” 

Contaram-me que havia movimento entre oito e meia e nove horas, ponto para o funcionalismo antes do meio-dia, nova movimentação às cinco e depois das seis e meia até a hora da drogaria fechar. A turma falando, Velho Amadeu escutando. Quando ele falava, então, milagrosamente, todos paravam para escutar. Ouviam-se umas histórias de Pouso Alegre, contadas por uma espécie de antigo farmacêutico ambulante, e ex-médico clandestino, e outras ilegalidades, de onde tirara uma riqueza de experiências humanas para os livros, continuando realista e sincero, carimbamba e mineiro. E vá de contar causos de Pouso Alegre. E vá de a gente o escutar de boca aberta. Parecia que Pouso Alegre era a cidade maior do mundo, de tanta coisa que acontecia por lá. Meio injustamente Velho Amadeu foi arranjando fama de mentiroso.

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