sexta-feira, 26 de abril de 2013

Anoitecer

Ruth Guimarães 

Dizia Carlos Drummond de Andrade que ele foi um jovem como outro qualquer. Não tinha muita consciência da vida nem sabia o que era a velhice. Olhava para os velhos com pena “coitados dos velhos” e não se dava conta que um dia chegaria a sua vez. 

A segunda indicação de que certamente sei o que digo (continuando nossa conversa da semana passada), é que hoje, velha de noventa anos, vejo a mesma progressão insidiosa que envolvia a velha Honória e o velho guarda-chaves Juca Botelho. Essa progressão à qual nenhum dos meninos, meus irmãos e eu, sob a sua guarda, prestava atenção, porque ambos envelheciam com uma lentidão que tornava quase insensível o desgaste. Eu vivia na e com a velhice, sem estranhá-la porque a meninice se adapta facilmente. Os meus dois velhos, à medida que a vida continuava eles a iam perdendo. Ficaram muitos desarvorados e ausentes. Eu, que era a neta mais velha, fui chamada a fazer muitas coisas que não aos pais biológicos. Assim, tinha que ler para eles o jornal inteiro, porque a vista não ajudava. E quando minha avó costurava uma interminável colcha de retalhos, enfiava sucessivamente as agulhas de que precisava. Nessa época não havia aparecido a TV e em nossa casa não havia rádio. Também lia contos e romances, sob as árvores, nas horas quentes do dia, enquanto meu avô deitado na rede pensamenteava não sei o quê. Era eu quem tirava o recibo de aluguel de meia dúzia de casinhas que os velhos alugavam a famílias pobres. Fazia recados, pagava contas de luz e água, acompanhava meu avô a compras no armazém e minha avó às visitas de velhas comadres e à costureira. Eu lhes alcançava os óculos e a bengala do avô. 

Quando eles precisaram realmente de mim, eu não estava mais em casa. Tinha saído para trabalhar na Capital e meu avô era orgulhoso demais ou dedicado demais a mim, para pedir que não fosse. Entretanto, quando chegava à minha antiga casa e os via, ele na sua rede, ela na sua banqueta, sentia o vago desinteresse com que me recebiam do outro lado do mundo, presas já do processo de desprendimento gradativo próprio do envelhecimento. Financeiramente não tinham problemas. O trabalho da casa e o cuidado deles era feito por empregados. Com um pouco de despeito, mas indubitavelmente aliviada, eu me dizia: “não faço falta”. E nós nos mostrávamos alegres como antes, eles tinham pequenas solicitudes, iam apanhar as primeiras frutas nas mangueiras carregadas e a avó mexia as panelas (que boa cozinheira que era ela!), cantarolando “o pintor que pintou Ana”. 

Hoje que a emoção não mais me apanha no seu vórtice delirante, mas vem como onda mansa, percebo o ciclo se fechando. E até sei, pelas suas reações, quantos anos tinha a minha velha avó nessa ocasião. Como me casei com um primo da minha idade, eu o vejo com os olhos de ontem e de hoje e me parece estar casada com o meu próprio avô. 

Estamos repetindo a vida. 

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