quinta-feira, 25 de abril de 2013

A ciranda dos reis

Ruth Guimarães

Botelho Netto
Foto de Botelho Netto
O povo tem dentro d’alma o respeito e o amor dos reinos encantados. É o velho namoro com o poder, a sede do mando, a recorrência à magia. Registra-se o fascínio popular pela riqueza, pelos ambientes luxuosos. Joãozinho Trinta, o experiente carnavalesco, dizia que pobre detesta a singeleza. Cordão carnavalesco de pobre é aquele resplendor infinito, com seda, cetim, brocados, miçangas, laços e fitas. Assim se exprime o gosto pelos reis e sua história. Na multidão, todo aquele que se destaca vira rei. É o rei Pelé, o rei Roberto Carlos, o sinhô rei dos contos medievais, o rei da Cocada Preta dos comentários depreciativos. O rei do Forró. O rei da Vela. O rei Momo, tão sisudamente coroado e empossado cada ano, nos muitos carnavais. E os reis Magos, que visitaram o Menino, dia seis de janeiro e que continuam sendo festejados nos muitos encontros, em São Luiz do Paraitinga, em Aparecida, por aí tudo, em todo o Vale do Paraíba do Sul.

Eles chegaram montados nos camelos de longo pescoço, camelos meditativos, como todos os ruminantes.

Nesse primeiro perseguir de uma quimera, atrás da estrela-guia, os reis perceberam que a estrela (ou o cometa, se quiserem) se imobilizava nos céus de Belém, deixando de se mover no firmamento. E agora? Pergunta que pergunta, daqui e dali, sem conseguir a informação de que precisavam, os reis resolveram falar com o tetrarca Herodes, que assistia na Judéia. Interpelaram sobre esse que havia nascido em Belém, ou lá onde fosse. Onde estava? Eles teriam que encontrá-lo para prestar-lhes as devidas homenagens. Tratava-se de um enviado divino, um rei dos reis. Herodes foi suspicaz, cauteloso. “Pois vossimeceis estão me contando uma grande novidade. Cuidava eu que rei dos reis somente os romanos. E que soberano, aqui, eu somente, preposto deles. Mas ide buscar esse novo recém-nascido rei, estou certo de que o achareis. Esses judeus são fonte inesgotável de novidades. Quando o achardes, voltem aqui para me orientarem e eu irei adorá-lo também. Nós os reis nos entendemos.”

Os magos compreenderam tão bem tal assertiva que partiram e não voltaram por esse caminho. E até, pasmem! consta que se disfarçaram em palhaços, para deambularem pelas ruas de Belém sem serem reconhecidos pelos esbirros do tetrarca. Nesse disfarce, eles integram as folias, e são chamados marungos. Lá vão pelas ruas, aos pulos, num ritmo firme, com espaventada roupa de chitão, o saco da esmola numa das mãos, o açoite de espantar moleques na outra. E aquela dança de ritmo quente, aquela dança!

Quem são esses, que dissemos reis, para não destoarmos da avaliação popular? São os Santos Reis, feiticeiros? Profetas? Adivinhos? Mensageiros dos deuses? Quem são eles? Vieram de longe? De perto? Não se sabe de onde vieram. Diz-se que um era preto. De acordo com a cantoria dos foliões, ao longo do trecho paulista do Vale do Paraíba, de Queluz até Santa Isabel, são chamados de reis do Ó-ri-en-te.

O Menino nasceu dia 25 de dezembro. Os reis chegaram dia 6 de janeiro. Prestaram a sua adoração, trazendo ouro, símbolo de riqueza, incenso, do poder, e mirra da vassalagem, da fé. Eram feiticeiros? Magos? Eram reis.

Em que língua se fariam entender? Em que língua perguntaram pelo Menino? Em aramaico, talvez, língua em que dizem que Jesus pregou e era o esperanto da terra e do momento. Hoje, eles indagariam em inglês.

Os Magos, representados nas Folias, perdem muito da sua majestade, adquirindo uma brasilidade inesperada. O ritmo deles é completamente desconhecido nas terras do Óriente e em Belém da Judéia. Da roupa, nem é bom falar. Aqueles macacões de chitão florido, os chapéus cobertos de flores de papel. Tudo isso vem de outras eras.

Esses grupos de danças folclóricas vão ganhando terreno em programas de TV. A Sociedade normalizadora já os olha com outros olhos.


Ainda há pouco, folião não entrava nas igrejas, vestido a caráter, sozinho ou em grupo. O clero católico barrava aquelas fantasias. Hoje vemos em Aparecida, nas procissões, as folias e congadas, o moçambique, atrás dos santos em andor pelas ruas, acompanhando a procissão, não só acompanhando, mas dançando.

Outra modificação de importância capital, no que diz respeito à perenidade do fato folclórico é a presença da mulher nos grupos dramáticos, não só carregando estandarte, mas dançando e vestida à maneira dos integrantes masculinos. Até no moçambique, a dança dos pauzinhos, representativa dos combates entre mouros e cristãos, há séculos, em terras de Portugal.

Isto, naturalmente, devagar, sem brigas, sem pedidos, sem comentários, apenas acontecendo. E eu digo que profundamente acontecendo.

A realeza continua um quesito indispensável e inquestionável no nosso populário. Passados os magos, na roda do tempo, apresenta-se na sucessão um outro rei: o Rei Momo, senhor absoluto, uma vez que os magos, os feiticeiros, os profetas, passaram.

O rei Momo vem nas asas do vento, da lembrança, dos costumes, das religiões extintas, dos sonhos, da alegria, da falsa glória. É como todos os outros: eternos, mas passageiros, mortais mas ressurretos, entretecidos nos painéis do tempo, que vai e volta todos os anos, constituem uma sciomaquia singular.

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