quinta-feira, 30 de maio de 2019

Abismos...

Ruth Guimarães

Esses espantos, esses sonhos
Estes abismos
vieram de atávicos assombros.
Quando furtivamente caminhando
num pávido silêncio
o homem levou nos ombros
o medo enorme
do indomado, do invisível,
de outras sombras
- rodeando escombros,
onde a morte tocaia e vence.
(E um pávido silêncio...)

Este corpo que é meu e eu não domino
Ainda tem qualquer coisa de floresta
rugindo no sangue.
E qualquer coisa de raiva incendiada
do guerreiro que tomba.

E estes nevos que agora e sempre me atraiçoam
guardam, gravada a fogo,
a impressão do animal perseguido,
que se esconde e que espreita
e que nunca descansa.

Se não é música o que digo.
bate o ritmo dos maracás e dos tantãs,
essa herança imprevista
de algum avô dançador.

Minha mão tem gestos de garra.
Tem bruscos movimentos de segurar machados
de pedra
para a guerra sem tréguas
com os guerreiros de agora,
como eu redivivos.

Minha boca tem bruscos arreganhos,
ainda sustendo lembrança do enfeite
que rompeu a beiçola
de algum cabinda
ou de um negro de Angola.

O que em mim aceita a vida
e clama
pela luz,
é uma lembrança pagã da adoração do sol.

Agora falo de liberdade
e fraternidade
uma voz que se esconde sob a minha
tem qualquer coisa de rugido
de fera malferida
percorrendo a floresta
e atroando os ares de clamores.

Essa voz vem de outra vida de pavores.

Eu não sou eu.

Afinal o que é meu,
de tudo isso que tenho?

Ideias?

Pensam através de mim
milhares de gerações
com esses mesmos pensamentos.

Cada pensamento – admirado de si mesmo.
Cada geração – estatelada de espanto.

Sentidos?

Estranhos que
vibram de emoção,
como corcéis em disparadas.

Alma?

Essa participou do pavor de onde venho.
Trouxe impulsos,
arrojos, emoções, superstições e dores.

Se é minha,
não a quero.

Tenho medo dos seus pávidos silêncios.  

Nenhum comentário:

Postar um comentário