O romance “Água Funda” se inscreve no movimento
regionalista da chamada geração de 1945, que na realidade foi a terceira
geração do modernismo no Brasil.
Didaticamente, a primeira geração é aquela que
conhecemos como o grupo da Semana de Arte Moderna de 1922, com Mário de
Andrade, Sérgio Milliet, Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral, Osório César.
A segunda geração, que vai de 1930 a 1945, foi
inaugurado por Rachel de Queiroz (com O Quinze, de 1930) e teve José Lins do
Rego (com Menino de Engenho, de 1932), e Graciliano Ramos (com São Bernardo em
1934 e Vidas Secas, em 1938) entre seus principais nomes, na prosa. Na poesia,
estão Vinícius de Moraes, Jorge de Lima, Augusto Frederico Schmidt, Murilo
Mendes, Carlos Drummond de Andrade, entre outros.
Antes de passar para a terceira geração, à qual
pertence Ruth Guimarães, é preciso entender o contexto mundial da época.
O ocidente, mal refeito da Primeira Guerra Mundial,
com todas as mudanças geopolíticas que dela resultaram, estava mergulhado em
outras desventuras trágicas – a migração maciça e a reconstrução dos países
destruídos. Além disso, a queda da Bolsa de Nova York, em 1929, tinha abalado o
mundo de tal forma que até as relações políticas estavam contaminadas pela
economia. Naquele ano, o presidente brasileiro Washington Luís indicou como seu
sucessor o então governador do estado de São Paulo, Júlio Prestes. A oposição
era liderada por Getúlio Vargas. Júlio Prestes venceu, mas não levou. Getúlio,
com apoio das famílias mais tradicionais e dominantes, liderou o movimento
tenentista e assumiu o poder.
A literatura refletiu todas essas perturbações. E
abandonou o viés romântico, assumindo um tratamento mais realista nas
narrativas. Os escritores passaram a mostrar mais o homem perante sua condição
social, enfatizando, sobretudo, a miséria, as favelas, a seca e a luta pela
sobrevivência aliada ao descaso dos políticos. Não por acaso, a região
nordestina era a mais enfocada – graças, especialmente, ao estonteante sucesso
de “Os Sertões”, de Euclides da Cunha, um trabalho notoriamente pré-modernista.
O decênio de 1930, segundo Antonio Candido, representou
uma arrancada do pensamento e da literatura. Comenta o crítico (falecido em
maio de 2017) que o romance produzido nesse período se caracteriza pelo
neonaturalismo e pela inspiração popular, retratando os dramas peculiares do
país, tais como a decadência da aristocracia rural, principalmente dos senhores
de engenho, e a consequente formação do proletariado, em José Lins do Rego; a
luta do trabalhador, em Jorge Amado; a escravatura do trabalhador rural e o
êxodo para as cidades, em José Américo de Almeida e Graciliano Ramos; a vida
difícil das cidades em rápida transformação, em Érico Veríssimo.
Destaca-se, nesse período, ao lado da ficção, o
ensaio histórico-sociológico. Um de seus maiores representantes é Gilberto
Freyre, com Casa-Grande e Senzala, Sobrados e Mucambos,
e Nordeste (ainda nas palavras de Antonio Candido), obras nas
quais segue as tendências do Modernismo, ao estudar o papel do negro, do índio
e do colonizador na formação da sociedade ajustada às condições do meio
tropical e da economia latifundiária. Igualmente importantes são Raízes
do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda e Formação do Brasil
Contemporâneo e História Econômica do Brasil, de Caio
Prado Júnior.
Com a instauração do Estado Novo ditatorial e
antidemocrático, tem-se o ápice do Modernismo ideológico, e uma recrudescência
do espiritualismo, estético e ideológico, na análise de Antonio Candido.
Portanto, o decênio de 30 apresenta, no Brasil, sobretudo em seus últimos anos,
intensa carga espiritualista. Oriundas do Simbolismo, do nacionalismo das
pregações católicas de Jackson de Figueiredo, desenvolvem-se diversas
tendências ideológicas e estéticas. Como exemplos dessas tendências, pode-se
citar o romance introspectivo de Cornélio Pena, Fronteira, e
de Lúcio Cardoso, Luz no Subsolo, Mãos Vazias, o romance
social de Plínio Salgado, O Esperado, O Cavaleiro de Itararé, o
romance dramático, de Octavio de Faria, Mundos Mortos, Caminhos da
Vida. Na poesia, destacam-se Augusto Frederico Schmidt, de tendência
neo-romântica, e Jorge de Lima e Murilo Mendes, de tendência católica. “O
decênio de 30 nos aparece agora como um momento de equilíbrio entre a pesquisa
local e as aspirações cosmopolitas, já novamente dissociadas em nossos dias de
sectarismo estreito acotovelando-se com o formalismo”, esclarece Candido.
Como sabemos, a arte literária camufla, por meio da
linguagem, toda uma ideologia, seja ela social, histórica ou cultural.
Foi em meio a esse contexto histórico, social e
cultural, que aparece a geração modernista de 1946. Essa geração teve, na
poesia, nomes como Cassiano Ricardo, Péricles Eugênio da Silva Ramos, Raul
Bopp.
Na prosa, surgiram Lygia Fagundes Telles, Guimarães
Rosa e Ruth Guimarães. Aliás, esses três fizeram um lançamento conjunto em
1946, cada qual com seu livro – “Praia Viva”, “Sagarana” e “Água Funda”. Cyro
dos Anjos, que havia lançado “O amanuense Belmiro”, em 1937, voltava à cena
literária com “Abdias”, em 1945. Há extensa cobertura da imprensa da época,
mostrando Cyro dos Anjos e Ruth Guimarães, em alegre conversa, durante o
lançamento de “Abdias”, em São Paulo, em 1946.
Para a crítica literária, o regionalismo é um
movimento superado.
Ora essa! A própria crítica literária está em
processo de falência, já dizia Leyla Perrone-Moysés.
Os jornais trazem resenhas apenas dos livros mais
vendidos (e dá-lhe autoajuda). A revista Veja publica semanalmente uma lista –
também apenas dos mais vendidos, e 80% deles são livros estrangeiros. Não há
mais crítica literária na imprensa, desde que se aposentaram Antonio Candido e
Nelly Novaes Coelho e desde que morreram Álvaro Lins, Nelson Werneck Sodré e
Wilson Martins.
Cito três críticos remanescentes: Silviano
Santiago, imbuído de uma noção imperial de escolha, Marcelo Coelho, que tem
talento e competência mas segue ditames da Folha de São Paulo, e João Batista
Natali, também da Folha, também sensato, mas também Folha de São Paulo.
Esmiucei tudo isso no meu livro “Imprensa, Poder e
Crítica”.
Dentro desse redemoinho, ou dessa rede de moinhos,
Ruth Guimarães aparece, aos 26 anos, com um romance que instantaneamente chamou
a atenção da crítica. Ah! Sim. Na época existia crítica.
Opinião de críticos
Antonio Candido louvou o romance. Vamos ouvir o que
ele escreveu:
“Este livro exprime bem
o equipamento cultural e a visão de mundo de Ruth Guimarães, prosadora de
qualidade e conhecedora profunda da cultura popular brasileira. É um romance,
mas escrito como se fosse prosa fiada, como se fosse narrativa caprichosa que
vai indo e vindo ao sabor da memória, ao jeito dos contadores de casos. Esta
primeira impressão é justa, mas não deve esconder do leitor o que há neste
livro de composição deliberada, de técnica bastante complexa, rica em elipses,
em saltos temporais, em subentendidos. O que à primeira vista pode parecer meio
solto vai se revelando bem travejado, regido por um intuito fabulativo que dá
ao todo a necessária coerência, sem a qual não se instaura a verossimilhança.
Isso, quanto ao modo de
contar. Quanto à linguagem, a construção talvez seja ainda mais elaborada,
porque Ruth Guimarães consegue produzir um discurso de tonalidade espontânea,
mas de fato carregado de estilizações bem conduzidas. Aqui não há o
desagradável cacoete de muitos regionalistas: o de querer imitar com ânimo de
exotismo pitoresco os modismos caipiras foneticamente sugeridos, do tipo “bamo
ino” por “vamos indo” ou “entonce num havera de sê?”. Nada disso em Água
Funda, caracterizado pela elaboração arte-ficial de uma linguagem que
obedece à disciplina da gramática e, ao mesmo tempo, parece sair da boca do
povo rústico. Isso se chama literatura e consiste em inventar uma linguagem
suspensa entre o popular e o erudito, fazendo do livro obra que tem o timbre
das realizações cheias de personalidade.
A interpenetração
popular-erudito existe na própria concepção do livro, que é a história de um
pequeno grupo rural de onde emergem certos personagens selecionados, sobretudo
o par Joca e Curiango, sendo, ao mesmo tempo, uma espécie de afloramento do
estrato mágico e lendário. De tal maneira, que a história do par central pode
ser lida tanto como conseqüência das vicissitudes comuns da vida, quanto como
produto de forças misteriosas encarnadas nos mitos intemporais. Há
superposição, da qual resulta uma dupla leitura, cuja última instância seriam
figuras como a Mãe de Ouro, entidade perigosa do tipo das Iaras, que pode
assumir formas diversas no populário e aparece aqui sob o aspecto sideral de
luminosidade fatídica.
Essa comunicação das
esferas, do real ao fantástico, enriquece o texto e está ligada ao próprio teor
do discurso. De fato, o livro é narrado por alguém que não se identifica,
dotado de perspectiva onisciente e, parecendo membro do grupo descrito, é capaz
por isso mesmo de assumir uma taxa de credulidade que justifica as discretas
invasões do pensamento mágico. Esta voz penetra todos os refolhos das pessoas e
do mundo e, ao deixar suspensa a possibilidade do fantástico explicar o real,
assegura, ao mesmo tempo, a integridade deste. E nós podemos sentir, assim, a
realidade viva de uma região, com a sua natureza, os seus costumes, os seus
tipos humanos e também a magia insinuante dos mistérios que a mitologia popular
exprime.
Por isso, talvez sejam
felizes entre todos os momentos em que o narrador fala diretamente, porque
então sentimos a fusão da escritora culta e da voz que ela inventou para animar
o relato. É o caso do começo do livro, por exemplo, e também de muitos outros trechos,
como a descrição da missa campal.
O que estou procurando
sugerir é a complexidade dessa narrativa despretensiosa, que sabe fundir os
planos e passa com tanta maestria do individual ao coletivo, do natural ao
social, do real ao mágico. Voltando ao começo, é bom insistir no fato de Ruth
Guimarães ser não apenas uma escritora bem dotada para a ficção, mas uma
autoridade nos estudos da cultura popular, cultura que em Água funda constitui
verdadeira rede de sustentação. Livros da autora como Os filhos do medo,
como os contos que compendiou, como o belo estudo infelizmente ainda inédito
sobre o ciclo de Pedro Malasarte, Calidoscópio, mostram grande
saber folclórico servido por uma expressão clara e elegante, própria dos bons
escritores. O leitor verá, neste livro, que a fluência da narrativa, a
felicidade dos achados estilísticos e a densidade humana do todo fazem da
leitura uma experiência válida e um grande prazer. “
Nelson Werneck Sodré admirou “Água Funda”. Vejam o que ele
escreveu, num artigo chamado “O Velho Vale”:
“Ruth Guimarães,
em Água Funda, foi a narradora desse quadro de fundo das crenças e
dos conhecimentos populares, na região em que o vale toma contato com o sul
mineiro, ali mesmo onde, há tantos anos, que se contam como séculos, os bandeirantes
procuravam a soleira fácil da Mantiqueira, para passagem à zona mineradora,
onde o Paraíba, apertado pelos contrafortes de Quebra-Cangalha, se precipita
nas corredeiras a que tomou o nome a cidadezinha depois batizada de
Valparaíba. Todo o conteúdo emocional e pungente, cheio de reminiscências dos
mais velhos tempos e ungido da graça e da facilidade popular, foi captado, com
inteligência e arte pela narradora, que os fixou numa obra que, constituindo-se
um exemplo excelente de técnica literária, ficou profundamente ancorada nos
motivos populares.
Esse
encantamento, esse sortilégio profundo do vale, ainda quando os seus
filhos se afastaram para outras zonas, ficam em suas memórias. E assim começam
a surgir os escritores que, recordando-se das paisagens da infância e da
adolescência, recortam-nas com rigor e vivacidade, dando-lhe forma literária.”
Guimarães Rosa o invejou. Ele escreveu uma
dedicatória, no seu livro “Corpo de Baile”, dizendo a Ruth o seguinte:
“Ruth Guimarães, minha irmã, parenta minha, que
escreve como uma fada escreveria”.
Alves Mota Sobrinho, em artigo publicado na
Revista Ângulo, por ocasião do cinquentenário do lançamento de
“Água Funda”, em 1996, escreveu:
Eu resumo “Água Funda”
em três palavras: telúrico, ecológico e mítico.
“Água Funda” é telúrico,
porque brota da terra.
Ecológico, porque as
paisagens - física e humana - se transformam e também são transformadoras.
Mítico, porque mostra a
busca da Mãe de Ouro, forte, inatingível, porque inexistente, fruto do
imaginário popular.
Ruth, nos anos que se seguiram ao lançamento de
“Água Funda”, foi princesa, nos jornais paulistas: Correio Paulistano, A Manhã,
Folha de São Paulo, Diário de Notícias, A Gazeta.
Voltaria a ser notícia quatro anos depois, em 1950,
com o lançamento de “Os Filhos do Medo”, uma pesquisa de fôlego que levou
debaixo do braço para mostrar a Mário de Andrade, o Mário da Paulicéia
Desvairada, o Mário de Macunaíma.
O romance
O romance "Água Funda" retrata
a região sul-mineira do início do século. É uma história de costumes, com a
análise fundamental dos personagens e sua ligação com a terra, os conceitos de
família, sociedade, amor e dinheiro, num momento da vida brasileira em que a
máquina chegava para substituir os operários, os caminhões expulsavam das
estradas as tropas de burros e o homem pobre não sabia muito bem como se
estabelecer dentro dessa nova relação. A linha-mestra é o amor e a loucura do
amor, ou a loucura do desamor. Todos os personagens são reais, e embora as
situações específicas sejam fictícias, os acontecimentos se deram, precisamente
como foram contados. E, como frequentemente acontece, ninguém aprendeu nada do
seu significado. "Água Funda" é um retrato do Brasil,
na corrente literária regionalista que teve como princípio o resgate do pensar
brasileiro, e do sentir brasileiro.
As inovações de Água Funda
Água Funda é uma rapsódia sertaneja. Rapsódia é uma
composição musical de temas populares. Isso nos leva à musicalidade na escrita
de Ruth.
Além disso, foi uma obra pioneira em vários
aspectos:
1) anotou o papel da mulher independente (antes de
José Lins do Rego e Graciliano Ramos)
2) promoveu a transição para o mítico, de base
folclórica, mais ou menos como Mário de Andrade fez em Macunaíma
3) fez o registro da identidade brasílica, do
caipira paulista e mineiro – na esteira de Valdomiro Silveira, sobre quem
escreveu em 1974 um livro a quatro mãos com Bernardo Elis, da Academia
Brasileira de Letras.
Uma curiosidade: o caipira acredita em praga. Ruth,
que não era católica praticante, acreditava em praga.
A autora
Ruth Guimarães foi mulher de grande atrevimento
diante da vida. Tinha o atrevimento dos inconformados, o atrevimento dos
inquietos.
Uma mulher de grande força de trabalho. Produziu
uma portentosa pesquisa, o “Dicionário de Mitologia Grega”, para a Editora
Cultrix, em um ano, porque precisava comprar uma casa.
Mulher de princípios éticos e de retidão.
Honestidade a toda prova, inclusive nas palavras. Solidária, ensinando o que
sabia, inclusive mulheres pobres a produzirem artesanato como fonte de renda.
Fraterna. Atendia, o dia inteiro, pessoas que batiam à sua porta, desde
intelectuais para um dedo de prosa quanto mendigos em busca de um prato de
comida. Carismática. Líder. Serena.
Encerro com uma pequena crônica sua, texto que, ao
mesmo tempo que lhe revela o espírito, serve-lhe de epitáfio:
É julho
Ruth Guimarães
Quando esta crônica for lida, já estarei na
chácara, em pleno Vale do Sol. É julho. É julho das noites límpidas, de lua
líquida, de céu profundo, de estrelas geladas. É julho e a mangueira se
enfolhou de novo e se cobriu de flores. Contra o luar, ela parece solene,
grandona, misteriosa. Muito alta, toca as nuvens e as galáxias. Por ela roçam
os anjos de asas imensas. De dia, ela perde em espessura, despojada da
escuridão e ganha em juventude. Não mais joias dos astros, na cama de veludo e
sombra. Seu toucado é feito de flores e abelhas. Está enfolhada para a festa
nupcial, coberta de verde novo, e de pétalas antigas. O vento aí vem,
enamorado, soprando manso, nas tardes finas. Ouro velho forra o chão, suntuoso
tapete de desenhos inimitáveis. As abelhas voam zumbindo. Na florada da manga o
mel é grosso, é forte, cheira bem.
Na chácara o sol se levanta cedo. Às sete da manhã
já está de fora, gloriosamente, acabando de esfiapar um resto de neblina. E se
reclina sobre a mangueira feliz, reverdecida, tonta. Quem o anuncia é a
corruíra, que fez um ninho complicado nos ramos do maricá, depois que brigou
com a pitangueira.
É julho. Jamais esmaece o verde da grama. Jamais
esmaece o verde-oliva das laranjeiras cheirosas. Jamais esfria o raio de sol.
Jamais empalidece o azul cobalto do sol. Jamais entristece a cançãozinha clara
do Paraíba, murmurante entre as pedras, todo revestido de luz.
Mas as bananeiras de tronco roliço e palmas longas
soltam grandes cachos, que vão granando e amadurecendo, como se não fosse
julho. Mas os limoeiros perfumados têm flores e frutos a um tempo, num
desperdício. Mas os sanhaços furam os mamões de casca dourada e polpa doce,
macia, escorrendo melado, que os passarinhos desprezam e as vespas aproveitam.
Mas as velhas goiabeiras, que já estão meio caducas, não esperam a chuva: as
goiabas amadurecem, entre os vivas dos bem-te-vis e a zoeira dos marimbondos.
Há muito tempo, eu não ouvia os sinos. Aqui eu ouço
os sinos. Ninguém me acredita. Mas é julho, é inverno, os morros vestem a
florada roxa do capim-angola, as maitacas voam cedo para o mato, voltam num
clamor, às cinco da tarde. Asas de andorinha riscam (é julho) o céu sereno.
Elas daqui não se vão.
Da última vez que cheguei, foi com o repetido
suspiro de alívio que me confiei à sovada cadeira de braços, entre paredes bem
precisadas de pintura, coitadas! Havia de novo uma goteira. Deixem-me contar de
outro jeito: havia uma nova goteira. Lá estava a mancha. À entrada, o degrau
parece que me reconhece, estalou devagarinho, cumprimentando. O espelho
também me reconheceu. Diante dele não estava a estranha de outros reflexos.
Precisei de andar descalça pela casa toda, pois na sapateira, como de costume,
nenhum sapato, nem novo nem velho. Estariam por aí. Depois de vasculhar com uma
vassoura, embaixo das camas, encontrei dois pés direitos de chinelo.
Qu’importa lá?
Aqui sou rainha, sou czar, sou Deus, e como amo
esses chinelos doidos!
Então não é isso a felicidade?
Joaquim Maria Botelho,
jornalista e professor, mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC/SP e
especialista em Jornalismo Internacional pela Universidade de Wisconsin, EUA.
Foi presidente da UBE – União Brasileira de Escritores por três mandatos. Seu
livro mais recente é o romance “O livro de Rovana”.
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