Sobre Ruth Guimarães e
suas obras
Caio Henrique
Ruth Guimarães dizia que
sofreu três vezes em sua vida. Primeiro, por ser mulher; segundo, por ser
negra; e terceiro, por ser caipira. Foi romancista, cronista, contista,
poetisa, teatróloga, jornalista, folclorista, pesquisadora, tradutora e
professora. Publicou mais de 50 livros, que vão de romances a traduções e peças
de teatro. Ruth tinha mil facetas e uma habilidade nata para contar histórias.
É a única escritora latino-americana a ter uma obra — Os
filhos do medo — num verbete da “Enciclópédie Française de la Pléiade”, publicada pela Editora Gallimard. Porém, nada
seria se não fosse caipira. “Como Guimarães Rosa, para quem “o sertão é o
mundo”, também para ela “ser caipira” era uma condição antes espiritual e
ontológica do que exclusivamente regional”. Foi Guimarães Rosa que, em
dedicatória, descreveu Ruth como “uma das pessoas mais simpáticas que já
encontrei na vida; e que escreve como uma Fada escreveria”.
Nasceu e viveu em Cachoeira
Paulista, cidade localizada às margens do rio Paraíba do Sul, na região do Vale
do Paraíba, no estado de São Paulo. Orfã desde cedo, foi criada pela avó
materna, ajudando a cuidar dos irmãos mais novos. Casou com seu primo, o
fotógrafo José Botelho Neto, sendo mãe de nove filhos, três deles com síndrome
de Alport. Não tinha nem 18 anos quando veio a São Paulo, trabalhou como
datilógrafa e estudou na Faculdade de Letras e Filosofia da Universidade de São
Paulo (USP), sendo aluna de Fidelino de Figueiredo e Roger Bastide. Frequentou
a antiga farmácia Baruel, localizada na esquina da Rua Direita com a Praça da
Sé, em São Paulo, no final dos anos 1940 e início de 1950. Ponto de encontro de
intelectuais, a Baruel girava em torno do farmacêutico-chefe Amadeu de Queiroz — também
escritor — que recomendou a Ruth publicar seu primeiro livro,
“Água Funda”. Foi discípula de Mario de Andrade. Colaborou com publicações
famosas, como os jornais Folha de São Paulo — onde
intercalava suas crônicas com Cecília
Meireles e Carlos Heitor Cony — e diversos outros no Rio de Janeiro e Porto Alegre.
Foi professora de português na rede pública do estado de São Paulo, além de
professora universitária em universidades do Vale do Paraíba. Teve tempo, ainda, de ser secretária de cultura em muitas
cidades do Vale, além da já citada ocupação como integrante da Academia
Paulista de Letras .
Viveu muito, porém, sobre ela
mesma, disse pouco. Durante sua vida, raros são os comentários sobre sua obra
ou sobre si mesma. Porém, é em uma de suas crônicas, que podemos ver quem
realmente era Ruth Guimarães:
Ah! Eu conto histórias para quem nada exige, e para
quem nada tem. Para aqueles que conheço: os ingênuos, os pobres, os ignaros,
sem erudição nem filosofias. Sou um deles. Participo do seu mistério. Essa é a
única humanidade disponível para mim. Quem me dera escrevesse com suficiente
profundeza, mas claramente e simplesmente, para ser entendida pelos simples e
ser o porta-voz dos seus anseios. Meu temário são as acontecências sem eco no
mundo, mas que ajudam a explicar a vida e seus segredos, que talvez possam
conter a alma imortal de cada um, seja do rústico, seja do letrado, com suas
virtudes essenciais. (GUIMARÃES, 2007, apud BOTELHO, 2014, p.7).
Antônio (2015) define bem ao
dizer que Ruth foi “uma voz de muitas vozes, para quem se pode dizer o que
Manuel Bandeira escreveu a Mario de Andrade: sua vida continua na vida que você
viveu.”. Sua obra é plural, assim como a vida dessa mulher que preferiu sempre
se manter afastada da vida intelectual urbana, escolhendo continuar com seu
povo de raízes negras e caipiras. Ruth Guimarães morreu aos 93 anos, em
Cachoeira Paulista, devido a complicações geradas pela diabetes. Era dia 21 de
maio de 2014.
Os demônios val-paraibenses
“Os Filhos do Medo” foi o
primeiro livro de Ruth Guimarães, porém, o primeiro a ser publicado foi o
romance “Água funda”. A obra foi para as prateleiras em 1946 pela Editora da
Livraria Globo — livraria tradicional de Porto Alegre que, mais
tarde, em 1986, se uniria com a Rio Gráfica de Roberto Marinho–, tendo
repercussão e sucesso de crítica. Foi a primeira obra de uma escritora negra a
ter destaque no mundo literário. Teve uma segunda edição publicada, em 2003, pela Editora Nova Fronteira — adquirida
pelo Grupo Ediouro em 2013 — revista pela autora e com prefácio de Antonio
Candido. A obra se passa na fazenda “Olhos D’água”, local retratante do
universo rural e caipira cuja Ruth Guimarães se tornou porta-voz e especialista em suas obras. Aqui vemos a junção do
popular com o erudito, um romance histórico, passando por duas gerações que
viveram naquele local, ancoradas em crendices, ditados e provérbios. É ficção,
e não é. “É um romance, mas escrito como se fosse uma prosa afiada, como se
fosse narrativa caprichosa que vai indo e vindo ao sabor da memória, ao jeito
dos contadores de casos” escreve Candido. Curioso notar que o mesmo Antonio
Candido, em 1946, em resenha crítica ao “Diário Associados”, diz que Ruth
“refresca agradavelmente a nossa sensibilidade e revela uma escritora que
poderá atingir um nível literário de primeira ordem.”
Em 1950, também pela Editora
da Livraria Globo, agora apenas Editora Globo, “Os Filhos do Medo” é publicado.
Tinha nos seus pouco mais de 230 páginas a documentação das manifestações do
demônio, e do medo que ele trazia ao imaginário do povo radicado no Vale do
Paraíba e sul de Minas Gerais. Na altura da publicação, Mario de Andrade já
estava morto. Foi ele quem criticou, orientou e aconselhou Ruth na escrita de
“Os Filhos do Medo”. Em duas cartas póstumas direcionadas ao grande
representante do modernismo paulista, Ruth Guimarães ora se dirige a ele como
mestre, ora como amigo: “Havia aprendido com você duas verdades: uma, que só
tem direito de errar quem sabe o certo. A outra é que o certo eu mesma é que
deveria encontrar. E eu procurei, padrinho Mário.”
Em “Os Filhos do Medo”, Ruth
Guimarães analisa personagens demoníacos exclusivamente de procedência rural.
Histórias, crenças e superstições oriundas de fazendas, arraias e periferias de
centros urbanos. Cidadezinhas, vilarejos, antigos assentamentos que hoje não
existem mais, esses foram os lugares os quais a autora escolheu para realizar
sua pesquisa. A força das palavras de Ruth vão além de mero estudo acadêmico ou
romance folclórico. “Os Filhos do Medo” é um livro com uma prosa particular,
ficando no limiar entre pesquisa folclórica e narrativa. Como Roger Bastide
(1951) muito bem coloca em resenha para o jornal O Estado de São Paulo, “o
folclore de Ruth Guimarães é proveniente da literatura e não da etnografia ou
da sociologia”. Consultando o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, podemos
definir quatro palavras-chave dessa frase para entendermos a magnitude da obra
de Ruth Guimarães.
Folclore: “1.conjunto de
costumes, lendas, provérbios, manifestações artísticas em geral, preservando,
através da tradição oral, por um povo ou grupo populacional; cultura popular,
populário […]”;
Romance:”[…] 7. Lit prosa,
mais ou menos longa, na qual se narram fatos imaginários, às vezes inspirados
em histórias reais, cujo centro de interesse pode estar no relato de aventuras,
no estudo de costumes ou tipos psicológicos, na crítica social.”;
Etnografía: “1.estudo
descritivo das diversas etnias, de suas características antropológicas, sociais
etc. 2. Registro descritivo da cultura”;
Sociologia: “1.estudo
científico da organização e do funcionamento das sociedades humanas e das leis
fundamentais que regem as relações sociais, as instituições”.
Romancistas têm a tendência
de deturpar ou deformar a seu bel prazer tradições, tudo em prol da narrativa.
Porém, estudiosos também possuem um distanciamento às vezes prejudicial do
ambiente estudado. Segundo Batisde, é aí que Ruth Guimarães encontra sua força,
nos introduzindo “na própria atmosfera do meio”, tornando “seus informantes
entes vivos. O que nos torna participantes no livro.”
Durante a leitura — que
começa com análises de grande obras sobre o folclore oriundos do mundo inteiro
e vai até depoimentos de velhas senhoras anafalbetas — Ruth
nos transporta como se estivessemos escutando uma avó contando uma história
para seus netos. Lembrei-me muitas vezes de
minhas próprias avós, que adoram um “dedo de prosa” e destilam sabedoria
contando seus passados. Sobre a obra em si, a escritora procura entender a
origem de onde certos adágios, lendas e crenças vêm. Não deixa de lado quase nenhum
personagem que, mesmo em nossa sociedade contemporânea, está relacionado ao
demônio e ao medo. Fala de lobisomens, bruxas, fogo-fátuo, saci-pererê, anjos,
demônios, santos, curupira, cruzes e superstições tão comum a nós ainda hoje,
como dizer “saúde” para alguém que acabou de soltar um espirro. A obra se
mostra mais atual do que pensamos a primeira vista.
Bibliografia consultada:
ANTÔNIO, Severino. Ruth Guimarães: Uma Voz de Muitas Vozes. Revista Mulheres e Literatura, v. 15, 2º Sem. 2015. Acesso em: 9 fev. 2017.BOTELHO, Joaquim Maria Guimarães. Ruth Guimarães, da Palavra Franca.Ângulo: Cadernos do Centro Cultural Teresa D´Ávila, Lorena, v. 1, n. 137, p.6–8, Jun. 2014. Trimestral. Acesso em: 12 fev. 2017.
BATISDE, Roger. Os Filhos do Medo. O Estado de São Paulo (link 1) (link 2)São Paulo. 1 abr. 1951. Acesso em: 13 fev. 2017.
BARBOSA, Alexandre M. L. Ruth Guimarães: entrevista. Jornal Lince.Aparecida, ano 2, nº 21. set 2008. Acesso em: 9 fev. 2017.
CANDIDO, Antonio. Água Funda. Ângulo: Cadernos do Centro Cultural Teresa D´Ávila, Lorena, v. 1, n. 137, p.14–18, Jun. 2014. Trimestral. Acesso em: 9 fev. 2017.
GLOBO, Editora. História. 2017. Acesso em: 13 fev. 2017.
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