Júnia Botelho
A casa esteve sempre aberta, janelas escancaradas. Houve tempo em que não havia chaves, nem portão de entrada, só mesmo uma cerca viva (mas com arame farpado!)
A casa sempre teve muita luz, recebe o sol o dia todo. É sempre muito cheia, o dia todo um grito na porta: dona Ruuuuuuth! A senhora tem maravilha? A senhora tem rosa branca? Quer comprar uma galinha? Quer comprar um saco de esterco? Pode me arrumar uns limões? A senhora pode falar sobre o dia do folclore? sobre a mão fria? sobre o padre Juca? A senhora escreve uma coisinha para a inauguração da praça? para a feirinha de conhecimentos do colégio? Dá uma mãozinha na revisão da tese? Faz uma palestra em São Francisco dos Pinhais?
E sempre ia, dona Ruth, devagarona, atender o chamado. Fosse quem fosse, era atendido.
Falava pouco, observava muito. Ouvia tudo. E recontava. Várias vezes, e com o mesmo sabor. Saborosas eram suas histórias. A cada vez ouvíamos com a mesma atenção. Para nos deliciarmos com suas expressões, seus gestos e sua risada, que estourava infalivelmente no final como se fosse a primeira vez. Porque era a primeira vez.
Por que não as decorei se as ouvia tanto? Eu gostaria de saber de cor pelo menos aquelas de que eu mais gostava. Eu pedia toda hora a do “se me repugna”. Ela não se fazia rogar:
“Os seminaristas estavam tendo sabatina, e um deles não tinha estudado. Um colega, vendo sua preocupação, disse-lhe para prestar atenção nas respostas do companheiro que estava na sua frente e pronto! era só repetir. Era a vez do da frente que tirou das mãos do seu examinador o ‘ponto’: compaixão. O examinador perguntou:
- Se uma mosca caísse no seu pote de mel, o que o senhor faria?”
- Se me repugna eu pego a mosca com a pontinha dos dedos. Se não me repugna, eu tomo o mel com mosca e tudo!
Muito bem.
É a vez do nosso personagem. Ele tira o ‘ponto’ e recebe a fraternidade. Sua pergunta foi:
- Se o senhor vê um burro atolado em um barril de melaço, o que faria?
E a resposta, naturalmente, é:
- Se me repugna eu pego o burro com a pontinha dos dedos. Se não me repugna, eu bebo o melaço com burro e tudo!”
E então se emendavam as histórias de padres, verídicas como a do padre José que tomava café de colher, pois só punha uma gotinha na camada de açúcar, a do padre italiano, que no dia da paixão de Cristo homenageava o encontro da “mãe com o filho da mãe”, o mesmo padre que saía do confessionário e esbravejava com o seu fiel, querendo saber quem era aquele ordinário que estava roubando o pomar da igreja.
Os dias eram uma festa nessa casa grande, cheia de luz, cheia de gente, cheia de histórias.
Ela atendia a todos, apesar de saber ler nas pessoas suas mazelas e seus desatinos.
Dona Ruth guardava um segredo: ela tinha uma maldição. Absorvia dos homens sua essência. Sabia quem eles eram despidos de seus muitos eus, de suas vestes dominicais. Ela via o de dentro, o que somos para nós mesmos, aqueles que não mostramos para o espelho temendo nossa face mais obscura, a que mostra nossas ambições, nossas invejas, nossos egoísmos, nossos desejos, nossas insanidades, nossas superioridades e inferioridades, nossa baixa autoestima, nossas intenções.
Para nós mesmos, no espelho, acendemos uma luz. Mascaramos quem somos.
Bruxaria é mais do que uma crença, é um saber. Um conhecimento. Dona Ruth não só entendia, mas via. Viu os demônios de cada um de nós e aceitou sua maldição. E por aceitar, ganhou a companhia dos demônios menores, que a divertiam, com quem conversava e brincava. Não eram amigos imaginários, não eram fruto de sua imaginação, não era louca. Apenas via. Sabia. Ela não tentou convencer ninguém – e todos sabiam: sentiam-se pegos na armadilha. E as presas não sabiam como expressar essa sensação, esse estranho sentimento de serem apoderados por si mesmos. Ela se apoderava do que tínhamos de pior e então cozia histórias. Amassava o barro original e colocava o punhado muito encaroçado no caminho. Em personagem. Contava histórias fazendo-se personagem e ria de um riso largo, contagioso, por isso aceitávamos todos, os crentes e os descrentes. Porque verdadeiro. Cheio de magia e encantador e verdadeiro.
Eu queria as cinzas desta casa velha espalhadas no rio Paraíba. Queria eu também fazer um feitiço para recontar da mesma forma, para não morrer ainda.
Eu também recebi a maldição, mas o medo que senti afastou-a de mim para todo o sempre. Eu, hein? Para ganhar essa visão é preciso uma paz infinita, um equilíbrio total e uma perfeita condescendência para com o gênero humano, coisas de dona Ruth. Sabenças de dona Ruth.
Estava cozinhando o livro da bruxa. Não tinha pressa. Teria todo o tempo do mundo. Seria eterna. Faria quantos livros quisesse: o do tio Darwin, o “Um tal de Zé”, recolheria os mil contos brasileiros, reuniria suas crônicas, comporia a Medicina Folclórica e Zootecnia que já tem mais de mil páginas grampeadas, coladas, pesquisadas, coletadas. E faria mais algumas outras coisas. Na sua máquina datilográfica.
Mas a vida era um feitiço maior do que o da bruxa. Engelhou seus dedos, embaraçou suas ideias. Aquela que via através das pessoas não sabia mais quem era. Guardou todas as histórias em si, receptáculo fechado pelo tempo.
Qual o motivo dessa risada? Acho que ainda ri do que vê nas pessoas, de suas mazelas, de seus desatinos. Gargalha. Não consegue parar. O que será que viu? Que ouviu?
Teve muito tempo, sim. Mas teve que fazer escolhas. Deixou seus papeis se amontoando em pilhas nuns armários enferrujando e passou a cuidar de gente. De formar pessoas.
Ela era contadora de histórias. Seguiu. Para o nada. Com tudo. Consigo e com Deus. Não sei se acreditava em um Deus. Acreditar bastaria?
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