quinta-feira, 29 de maio de 2014

Morre aos 93 anos, a escritora Ruth Guimarães


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Segundo informações do jornal O Vale, a escritora Ruth Guimarães morreu na tarde desta quarta-feira, em Cachoeira Paulista. Natural da cidade, ela tinha 93 anos e sofreu uma parada cardíaca enquanto dormia.
A escritora se recuperava de um AVC (Acidente Vascular Cerebral) sofrido em novembro do ano passado. Ruth completaria 94 anos no dia 13 de junho.
Ela foi a primeira escritora brasileira negra que conseguiu projetar-se nacionalmente desde o lançamento do seu primeiro livro, o romance Água Funda, em 1946. Ruth foi formada em filosofia pela USP e também atuou como jornalista em diversos veículos.
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Leia a entrevista concedida por Ruth Guimarães ao jornal O Lince em 2008:
O Lince – Estamos na residência da escritora Ruth Guimarães, em Cachoeira Paulista-SP, para uma entrevista exclusiva para o Jornal O Lince. Dona Ruth, muito bom-dia! Eu gostaria de começar fazendo um questionamento à senhora que é de praxe: Como começou essa ligação da senhora com o escrever, com a escrita, enfim, com a literatura de um modo geral?
Ruth Guimarães – Eu acho que isto vem da minha família. Meu pai tinha uma biblioteca, então, quando eu era bem pequena, eu já brincava com livro, já folheava livro. Quando eu estava na escolinha da roça, já lia os livros do meu pai, apesar de que ele tinha só o Machado de Assis e outros da mesma época, mas a gente lê o que tem, né? Lê o que pode. Li Monteiro Lobato. Monteiro Lobato foi o meu iniciante.
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Ruth Guimarães em 1946
Fonte: www.retratosecronicas.blogspot.com.br
O Lince – Depois desse primeiro contato, o que levou a senhora a buscar um curso de Letras Clássicas, o que levou a senhora a buscar essa aproximação maior com a literatura?  Teve algum fato marcante ou esses primeiros contatos com Machado, com Monteiro Lobato é que foram a provocação, o estímulo bastante para isso?
Ruth Guimarães – Eu tive mãe muito imaginosa e gostava muito de ler romance. Em Lorena, eu estudei no começo do ginásio em Lorena, e em Lorena havia uma família, Di Domênico, que alugava livros a 200 réis cada um, por oito dias, e como minha mãe gostava muito de romance, ela me mandava fazer uma assinatura e trazer uns quatro ou cinco livros pra casa. E aqueles livros corriam, mas eram livros assim: Delly… eu nem me lembro mais os autores… esses livrinhos pra moça, porque era isso que minha mãe lia, e eu lia também, mas, com a continuação de leitura, eu fui apurando a maneira de escrever, ficou fácil pra mim escrever. A prática né! Então, tendo prática de escrever, quando havia aula de redação na escola, a minha redação, ainda mais que eu contava com a imaginação da minha mãe que eu herdei… eu tenho muito imaginação… então, com essa prática de ler romance, eu fiquei com uma facilidade muito grande de escrever e quando havia aula de redação que a professora mandava escrever historinha, mandava descrever a sala de aula, claro que eu tinha uma provinha ou um trabalho diferente dos outros trabalhos por causa da minha prática. E aí as professoras se entusiasmavam e mandavam pro jornalzinho da cidade. Chamava-se “O Cachoeirense”. Então, com dez anos, eu escrevia n’O Cachoeirense (risos). Pena que eu não tenho, não guardei, não me incomodei com isso pra ver que porcarias que eu escrevia (risos).

Leia o corajoso discurso proferido por Ruth Guimarães na  na 1ª Bienal Nestlé de Literatura – ano de 1983

Ruth Guimarães
Tantos fizeram o diagnóstico da situação do negro em nosso meio, que não vou por este caminho. Quero dar apenas a minha visão do posicionamento de tantos que, como eu, são vitimas e cúmplices de um status quo. E de alguns que, quando escapam da armadilha, são ainda mais cúmplices das forças de opressão que antes, eis que a fortuna redobra o medo de perder. Talvez seja necessário admitir que não se trata propriamente da situação do negro, mas do pobre, na acepção mais completa do termo. Isto é, o negro na situação de desvalido.
Quando li o meu nome sob o título O NEGRO NA LITERATURA BRASILEIRA, tive as minhas dúvidas sobre o significado. Seria a literatura do, ou sobre o negro? Seria o negro personagem ou autor? Para falar como professora de Língua Portuguesa, que sou: o negro seria o sujeito ou objeto?
Sobre o negro, temos os inolvidáveis documentários de Gilberto Freire, Nina Rodrigues, Edson Carneiro, Artur Ramos e muitos outros, como Clóvis Moura. Etnólogos, sociólogos… Não é a minha seara.
Meu romance ÁGUA FUNDA saiu nos anos 40. Eu sou da geração de 45. Surgi pela mão de Edgard Cavalheiro, Santo Edgard, para os amigos.
Acontece que eu era do grupo da Baruel, onde pontificava o velho Amadeu de Queirós, a quem fui enviada para umas consultas folclóricas, por Mário de Andrade. Velho Amadeu já nessa ocasião, tinha muitas queixas dos moços. Não fazem nada, não levam nada a sério. Eu tenho 77 anos e escrevo duas horas por dia.
Eu fui escutando aquela lenga-lenga. Não disse nada. Mineiro trabalha em silêncio. Saí a alguns dias, apareci na Drogaria com os originais de Água Funda. Então, ele me mandou para o Edgard Cavalheiro e a Globo editou meu 1º livro.
Primeiro, vou esclarecer a história de mineira.  Meus pais moravam em Minas, no sul montanhoso, e minha mãe, grávida de 7 meses, foi para Cachoeira Paulista, para casa dos meus avos, onde nasci. Quando eu falava que era paulista, a piadinha de minha avó era: não é porque a gata dá cria dentro do forno que o gatinho sai biscoito.
Pois foi na Drogaria Baruel que conheci Fernando Góis, jornalista de muitos méritos, mulato. Militava em inúmeras associações de negros e levou a peito me introduzir nesse clima de lutas pelas reivindicações, vamos dizer raciais. Por meio dele, conheci agremiações, clubes, sociedades, o gheto negro do Baixo Piques, as rodas de prosa da Rua Direita, com seus domingos negros, famílias de negros, as gafieiras, o Bixiga dos cortiços, tudo. Dizia ele que havia duas espécies de negros omissos: aqueles que faziam zumbaias para os brancos e viviam em clientela com eles, e se faziam de alegres, de agradáveis, de palhaços, para obterem favores, o favor de serem tolerados; e aqueles que por toda a parte ficam muito quietos e muito discretos, para ninguém perceber, ou para ninguém que eles são pretos. Como eu não era nenhuma dessas espécies, e não cabia em nenhuma dessas classificações, a alternativa era a luta. Agora vem a indefinição. Lutar para obter o que? “Igualdade”, entre aspas, diante da lei nós temos.
Aos 22 anos, que era quantos anos eu tinha, ninguém me pôs claramente os objetivos.
Liberdade não é apenas uma palavra, para mim. Liberdade é rumo, é programa, é meta. Existe pouca gente livre no mundo.
Eu sou livre.
Sou livre, porque conquistei, com unhas e dentes, cada centímetro do meu espaço.
Sou livre, porque não entendo de lamurias nem de queixumes.
Sou livre, porque obedeço apenas à voz da minha consciência.
E sou livre também porque não ligo para dinheiro e não me importa a glória.
Nessa questão do negro, como sou meio-a-meio, não vejo sentido em funcionar só com a metade, seja a branca, seja a preta.  Não me atenho à complacência do branco e não aceito a recriminação do negro. Tenho o direito de fazer as minhas opções por mim.
Quero ver claro nesse assunto. Que é que nós queremos? Ser absorvidos por uma civilização branca e tolerados, como os estrangeiros que já fomos, tendo que nos conformar com o que nos queira oferecer o dono da bola? O dono da terra? O dono do mundo?
Ou o que?
Quem nos deu donos? Por que aceitamos os donos?
Não me parece que no Brasil haja um problema especifico de raça. A coisa é muito superficial, muito epidérmica.
O que há, realmente, é um problema de classe, centrado no negro por muitas razões políticas e econômicas. E o negro não saiu e não sai da senzala, por falta de conhecimento.
Vejam que, quando se encontra um negro com educação superior, foi adotado por uma família de brancos, teve o respaldo dos brancos. E a situação de clientela continua. Acabamos perdidos numa sociedade com a qual nada temos que ver. Para o artista negro não há peças. Quem as escreve? Onde estão os escritores negros? Estão em emorião, na periferia, nos cortiços, nas favelas. De onde surgirão quando houver um direcionamento, numa conscientização geral, por parte da sofrida população negra. Não é a pobreza somente o que a segura. É o condicionamento da senzala.
Agora vem o questionamento mais importante: o que vim fazer aqui? Por  que vim? À Nestlé e ao mundo.
Negra eu sou, o que não é nenhuma originalidade neste país. Negra e escritora, o que já constitui um modo singular de ser, dadas as circunstâncias. Também sou escritora regional, e, como caipira, a única.
Negra, escritora, mulher e caipira. Eis aí as minhas credenciais!
Também sou professora e a minha cátedra é o meu púlpito. Não tenho alunos brancos e pretos. Tenho alunos. Ensino-os, não somente a colocarem bem os pronomes ou a regência dos verbos. Ensino-os a manejarem a língua e a amá-la, a servirem-se dela. A darem forma a seus pensamentos. Ensino-lhes o orgulho de serem homens e mulheres. De serem alguém no mundo. Ensino-lhes o que uma criatura pode obter de si mesma. Não com essas palavras, mas com a grande voz profunda dos mestres de literatura. E os meus alunos ficam sabendo o que eu espero deles.
E eu sou escritora. A minha máquina de escrever é uma arma.
O que venho, pois, fazer aqui?
Eu venho aos negros da minha terra, meus irmãos, pregar o orgulho.
Os personagens negros dos meus contos negros, alguns publicados por aí, alguns inéditos, são negros feitos de pedra e aço.
Eu disse que não entendo de queixumes e lamurias.
Há solução para a população negra desta terra. Temos que aprender. Lugar de negro não é no botequim. É na escola. Não é na cozinha. É na escola. Não é na macumba. É na escola. Não é no sambódromo, como espetáculo. É na escola.
Repetindo e parafraseando Brecht: se o negro tem fome, se está vezado, humilhado, ofendido, agarre o livro. É uma arma.
Pendurado nos ônibus cheios, nos andaimes das construções, roto, ferido, fracassado, agarre o livro. É uma arma.
Eu venho aos negros pregar o orgulho: de sua pele de bronze ou ébano. Do seu trabalho, da sua inteligência, da sua bondade, de sua alegria, do seu samba, de seu lugar no mundo.
Sem escola e sem orgulho, o que nos resta? Porteiro, contínuo cama, cozinha, fundo de quintal e porta dos fundos. Resta apenas irmos para onde nos empurram.
Qualquer trabalho é honroso, por escolha, não por força.
Nosso lugar é em todos os lugares.
Nós estamos aqui. Nós estamos aqui para ficar. Queiram ou não queiram, nós somos o povo brasileiro. E já que estamos aqui, já que nos trouxeram, só o que falta é sermos. Era só o que faltava, sermos estrangeiros em nossa própria terra.
Devo dizer que nunca minha pele marron foi obstáculo ou barreira. Nesta terra abençoada, o talento, a vontade, a competência, não tem cor. Lembro-me de dois elogios, os que mais me tocaram, e vou relatar:
Contou-me Marcos Rey que Hernani Donato, irmão dele, estava lendo um livro meu e, às tantas, falou, com força: “Ô nega desgraçada prá escrever!”.
O outro episódio se deu com Ernani Silva Bruno, que foi meu Diretor, no Palácio da Cultura, nos Campos Elíseos.
Parei na porta do gabinete, e, quando ia pedir licença, ele gritou jovial, lá de dentro:
- Entra, Irene!
Pois vim aos negros pregar o orgulho:
Não queremos bondade, nem tolerância, nem paternalismo. Não queremos nem que falem por nós. Apenas escutem.
Queremos igualdade, não concedida, mas conquistada.
Esta terra é nossa.
Eu vim hoje, aos negros que me ouvem, pregar o orgulho.
Negra! Eu sou. Com muita honra!

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