Ruth Guimarães
Retrato? Apenas de perfil. Deixemos a outra face, a da Poesia, mergulhada na sua sombra e no seu mistério.
Poder-se-ia dizer, em primeiro lugar, que Amadeu Amaral foi um artista que nasceu atrasado, se também não se devesse afirmar, com mais esperança do que verdade, que os tempos do trabalho e do ideal são todos os tempos.
Muito antes de o ler, tinha eu já notícia dos ditos irônicos, da casmurrice, da capacidade fenomenal de trabalho, da minuciosa exatidão e ordem com que escrevia. Também sabia do caprichoso humor cambiante, meio temeroso, das explosões de alegria, dos pesados silêncios, do modo arredio, da desconfiança excessiva.
Entretanto a primeira noticia real e a primeira pincelada de auto-retrato vieram numa carta escrita por ele a Mario de Andrade:
“O senhor está ligado em minha terra, que é também a sua, a uns tantos escritores e poetas que me têm feito uma guerra surda, surda quase sempre, às vezes, aberta, pagando com maledicências e com epítetos de todo tamanho a atitude altamente imparcial, serena, compreensiva e até simpática que sempre mantive, por temperamento, por sistema, por curiosidade de espírito, por esforço de equanimidade, diante de todos quantos, bem ou mal, aparecem a labutar em letras neste país analfabeto”.
É mister separar as muitas e múltiplas faces de cada atividade de Amadeu Amaral, - que as teve muitas – se o quisermos compreender, pois como o Trimegisto é ele tresdobrado. Nele convivem o esteta, o humanista, o autodidata, todos com um denominador comum de determinação e trabalho.
O esteta e o humanista se confundem gerando o amor da forma, o que fez muita gente distinguir nele o parnasiano que não foi. Ao seu autodidatismo podemos ligar, talvez, a forma tentacular das atividades inumeráveis, no campo da literatura, sem que tenha se firmado no ensaio, que as qualidades de exegeta faziam prever. É do autodidata, em segundo lugar, o entender a crítica como exegese e não como lição.
“Discordo da atitude do que poderia ter sido. A crítica deve aludir ao que foi e é”.
Vá lá que se dedique apenas à critica apologética. Ele a faz como homem sincero, quando admira realmente o criticado. Concedemos que lhe seja uma feição acidental, apenas uma faceta do talento. É nela, todavia que lhe surpreendemos as qualidades mais marcantes do caráter, e a sua orientação moral, filosófica e estética. Quando afere valores alheios nos dá a medida exata para a aferição do seu próprio. E então, a espaços, como clarões da noite, nos é dado vislumbrar traços rápidos da personalidade inquieta e vigorosa, até que afinal surja o homem inteiro da obra crítica, claro como a água, nítido como efígie, bom como pão, valente como armas, e inesperado como bruxo, saltando de uma caixa de surpresas.
Inúmeras são as lições contidas na obra crítica de Amadeu Amaral: a posição permanentemente polêmica, o firme apostolado, a atitude de simpatia, o denodado trabalho, e, finalmente, a nota mais marcante, a sua auréola: a honestidade e a bondade. Dessas virtudes dão testemunho os seus contemporâneos, de maneira um tanto embaraçada e comovida. Hélio Damante nos diz que possui o dom da boa vontade. Era um homem profundamente sereno, dizem outros. “Plácido” confirma Cerqueira Leite, repetindo não sei quem. Não foi gratuitamente, por certo, que o filho, “o menor dos seus devotos”, escreveu uma biografia dele que tem por título: “A vida de Santo Amadeu”.
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