segunda-feira, 31 de março de 2014

Nossa Senhora de todas as dores

Ruth Guimarães

Temos um vigário que é poeta à sua maneira pois nunca lhe surpreendemos o pecado dos versos. É vê-lo de óculos, no seu carro, muito moderno e afobado, quem diria? Mas é poeta. Ouvimo-lo à tarde, às seis horas, nas comovidas preces à Virgem. “São as Vésperas, horas de sombras e crepúsculo, tudo se mistura e se duplica. Certa melancolia tempera o fim normal do trabalho diário” que assim descreve as Vésperas a Irmã Olga de Sá, no seu excelente livro de poesia Coisas Caladas. O sino toca. Um disco gira interminavelmente a Ave Maria de Gounod, ou de Schubert, ou de outro clássico qualquer.

A minha terra tem tardes lindas. Nunca vi ar mais transparente, nem céu mais translúcido, nem verde mais lustroso, nem recortes mais nítidos de montanhas azuis contra o azul mais profundo do firmamento escampo. Céu onde é setembro sempre. Várzeas onde é sempre primavera. Água de rio corrente, de música sempre, catadupas de luz esplendorosa sempre. Na tarde fina, que esmaece, se insinua o vago, o indeciso, a ternura, que é o esbater do amor. A cidade fica inteiramente quieta. A tarde é brasileira, morena, com uns tons de jambo-rosa e queda por uns instantes de dengue, desolada e desconsolada. Não como quem morre - mas como quem desmaia, e afunda, e se entrega. E cerra os olhos para no escurinho gostoso diluir-se em nada.

A voz do padre corrige essa molície pecaminosa.

“Meus caríssimos irmãos, diz Padre José – É hora da Ave Maria!”

É hora de abstrair do sensualismo doce da preguiça e pensar em nossa alma imortal. Na misericórdia e na bondade. É tempo de trocar o devaneio pela meditação. 

Ele não fala sempre as mesmas coisas e nem sempre é ouvido. Andamos surdos para as coisas divinas. O padre Vieira também não era ouvido e era o padre Vieira. Tampouco o era Santo Antônio, que teve de se dirigir aos peixes. E o próprio Cristo foi-o mais pelos inimigos que o crucificaram que pelos pescadores que o seguiam. Padre José Nunes anda em muito boa companhia. Um dia destes, dei comigo a escutá-lo.

Ela é uma só e múltipla na unanimidade, ele dizia. Senhora das Dores para os que sofrem! Senhora da Guia para os transviados. Senhora do Perpétuo Socorro, para os aflitos. Senhora da Graça para os degradados. Senhora do Amparo para os pequeninos. Senhora Auxiliadora para os que choram. Senhora da Boa Esperança, para os desprezados. Senhora da Bonança para os navegantes. Senhora da Divina Providência, para os angustiados. Senhora da Boa Morte, para os agonizantes. Senhora da Soledade, para os que estão sozinhos. Senhora da Boa Viagem para os caminheiros. Senhora da Paz, para os corações inquietos. Senhora do Conforto para os angustiados. Senhora da Glória para os confiantes. Senhora da Piedade para os desgraçados.

Não foram talvez estas palavras. Foi esse o sentido.

Sei que por uma tarde de luz morrente e mansa, tocaram meu coração empedernido, obstinado.

Ave, Maria!

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