quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Nascimento, Paixão e Morte de Silvestre

Ruth Guimarães

Silvestre nasceu numa noite de lua, a meio caminho entre a floresta e o mar. Foi na noite de 31 para o primeiro do ano. “João - disse a mãe - olhe na folhinha, que nome ele trouxe.” “Silvestre”, - disse o marido. Dependurou a rede de pescar, escancarou a porta. Por ela entrou o ar salino, forte, cheirando a maresia. O mar denso, verde-garrafa, se mostrou todo borrifado de prata, quando a lua apareceu. “Comadre fica com você, Rosa.”

Quando amou Silvestre o fez ao rude contato de asperezas inesquecíveis. Teve a amplidão, a terra nua. As areias. O embalo eterno da voz eterna do mar. E teve silêncio. Porque a voz do mar era tão obstinadamente constante que acabou por não ouvi-la mais.

Me contaram que a moça tinha um brilho molhado no olhar, com reflexos de lâmina, relampeando no escuro.

Silvestre impeliu a canoa. O céu, o mar, o próprio ar pesado, era tudo uma escuridão só. O mar roncou soturno, relâmpagos cortaram as trevas. Foi o inferno. O vento uivava como alma penada. A embarcação subia e descia sacudida pra lá e pra cá, numa bruteza raivosa. De repente o recife que tinha se distanciado, desviado para a direita, voltou, cresceu, subiu quase até o céu e correu a o encontro dos pescadores, como um demônio.

O som do sino encheu de um rumor de alarme a noite tranqüila. Ana correu assustada, com um xale escorregando dos ombros, a areia rangia sob o seu passo. Subia-lhe ao encontro a gente do povoado. Ela parou, o povo também. O badalar dos sinos cessou. Cessou o vento. E a gente que estava ali eram só silhuetas sem alma, na escuridão.

- Foi o Silvestre! – ela gritou.

Ninguém falou. De repente Ana se sentiu ligada àquela gente e a sensação não era nova, mas familiar, como se longamente experimentada. Sentia-se ligada a eles por uma fraternidade instintiva, profunda, vinda de mais longe do que o conhecimento, uma fraternidade sem memória, cósmica, definitiva, irrevogável, revelada num segundo, fulgurante como um relâmpago. No entanto, um pouco antes parecia que nunca mais haveria outra coisa no mundo que a angústia nas trevas e a caminhada através do silêncio, e o coração que doía numa dor sem idade.

Não foi assim que Ana me contou todas essas coisas, mas em duas frases bem singelas:

- Meu consolo é que eles estavam comigo.

E:

- Não levou tempo nenhum para amanhecer.
Imagem de Botelho Netto

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