quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Matinada

Ruth Guimarães

De manhãzinha, alguma coisa estava acontecendo, no ar, nas ruas, no céu. O que havia? Qualquer coisa inusitada. Rumor em demasia. Um susto, parecia. Canto em cascata de duas qualidades diferentes de pios. De uma parte um susto, um protesto. Mas escutem: que barulho é esse? 

Uma senhora matinada. Eram as maracanãs, uma espécie de papagainho sem graça, barulhenta gritadeira, madrugando para incomodar. 

O céu está sereno, de um azul consolador. 

De repente, não mais que de repente, a manhãzinha se encheu gloriosamente de uma barulhenta matinada.

- Que foi isso, gente? – indagou a Baita, saindo ao terreiro com as mãos em concha acima dos olhos. 

As coisas estão mudadas, mas alguma coisa permanece. As coisas estavam muito mudadas. A luz, as sombras. O beijo quente do calor na pele. Aquele revérbero, nos olhos, quando o rio desliza e caminha. Por exemplo, as flores se oferecem em beleza e são um chamado. Temos que contemplá-las. Temos que aprender que é primavera. O campo, o rio, o céu, sempre conseguem contar que ainda é primavera. E as maitacas, esse papagainho sem-vergonha, barulhento, pia, grita, martela, assobia, faz barulho com o bico e com as asas, não os deixa esquecer que é primavera. Grandes voos, rápidos, sincronizados, vão marcando o compasso, que são oito horas, que é manhã, que o dia é claro que o sol aquece, que a vida é uma dança de longos voos rápidos, que a vida é um voo. Que a vida é a vida. E que é música. E que são flores, são flores, são pios. 

Foi a primavera, foram os pios. E que foi que perturbou a música dos maracanãs?

Geralmente sabemos as horas, quando o alegre bando desaparece para os lados da montanha, longe, tão distante que a gente acaba não sabendo para onde vão esses papagainhos...

Hoje eles se atrasaram, perderam a hora. Perderam o ritmo. Não nos ensinaram nada a propósito das floradas, nem do tempo, nem da vida. Nem do espaço que é preciso medir. Nem do trabalho de todos os dias, que é preciso reafirmar que é belo. Hoje as maracanãs vão sem festa nem alegria. Música não há, mas um excesso de pios. Perderam até a hora da partida, que de costume acontece, ritmadamente. Se bem que em grandes gritos, que papagaio é ave sem medida nem música, o grupo é homogêneo. Cada um sabe o tom em que deve gritar quando deve gritar e por que deve gritar. E quando deve se perder no azul, longe, alto, esplendorosamente. 

Entretanto não sabemos a razão da perturbadora quebra de ritmo desses pássaros tão acostumados a um horário igual, todos os dias de todas as semanas de todos os meses, e que não perdem a hora nunca, e têm um reloginho nas asas, nos pios, e preenchem o seu horário como se Deus estivesse marcando para eles. 

E hoje estão desafinados, fora do ritmo e fora do horário... Que houve, afinal? 

E então vejo, não mais que de repente, que meninos e adultos não chegando para o botequim mais freqüentado pelo pessoal dos passarinhos de gaiola. E entram muitos e saem, e falam em altas vozes e começa a se delinearem pios sincopados, suaves, parece que uns respondendo a outros e são teimosos, rolam como cascatas, como escachoar de notas musicais, vão e vêm e recomeçam, são macios, acariciantes, também recomeçam em catadupa, mas sem aspereza. E, no entanto, sentimos que notas macias, repetidas, acariciantes, dezenas, centenas, nos fazem bem ao coração. 

Que foi? Que houve?

Imagem de Botelho Netto
- A senhora não sabe? – pergunta um pequeno ainda com uma gaiola na mão, onde um pássaro em que predomina o amarelo, se mata de tanto cantar. - Seu Tico da venda está fazendo um concurso de trinca-ferros.

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