Ruth Guimarães
Nestes umbrais do ano que começa, um romano
pagão levaria oferenda a Janus, deus das portas e das entradas, a quem janeiro
foi dedicado, e que tem duas faces, uma para o passado e outra para o futuro.
Não teria complicações demasiadas: nem apartamentos minúsculos, nem orçamento
apertado, nem rebates de consciência por ter filhos, ou por não os ter, não
haveria cotações de euros e dólares, nas folhas diárias, e não teria subido o
preço da gasolina.
Talvez nem complexos nem recalques, e não o
ameaçaria um segundo ataque de enfarte. Escolheria o anho mais gordo, a ovelha
mais branca, para o sacrifício, o cacho de vidradas uvas, o veludoso pêssego.
Se fosse um bárbaro cativo, de perdidas esperanças de voltar à pátria, e que já
não se lembrasse dos deuses lares, mas tivesse no corpo, nos costumes, uns
resquícios de cultura parcialmente esquecida, apresentaria ao deus dos começos
um punhado de erva amarga, um punhal rutilante, uma tâmara muito doce. Pois que
um ano se findara e outro vinha, prenhe de novas promessas. Conjurava-se o mau
fado, formulando-se bons desejos. E como se tratava de um começo, com um deus a
supervisioná-lo, era a ele que se dirigiam as afirmações de honestos propósitos
para o futuro. Quem sabe se planejara o alistamento nas legiões, a compra de um
boi e de um arado, a aquisição de uma escrava de bons dentes e boa altura, que
soubesse tão bem assar o carneiro, como trazer a água da fonte, e como aquecer
o leito.
Que podemos desejar hoje e bons propósitos
fazer? Boas entradas e melhores saídas, disseram-nos os amigos. Feliz ano novo.
Um chega ao fim, outro vem. Fim de quê? E começo de quê? Meu avô, no dia 31 de
dezembro de cada ano, pagava todas as contas e atravessava o São Silvestre sem
preocupação, a não ser a saúde e a vida da mulher e dos filhos. Mas esse meu
avô não comprava nada a prestação, não almejava um carro novo, e dormia
placidamente num colchão de crina. Ia para o serviço de tamancos e cobria-se
com um capote preto de muitos janeiros.
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