terça-feira, 30 de julho de 2013

Yacy-taperê, diabo menor – parte II

Ruth Guimarães

Repetindo: temos a lenda de jaci taperê, mito astral, acrescida de uma tentativa de explicação do canto do saci, este último elemento, mito florestal. Explica-se deste modo, também a concordância de yasy yateré, nas tribos guaranis do sul, duende em forma de pássaro, como o jaci taperê, no Norte. Se bem que seja mais provável ter a lenda migrado com alguma tribo nômade, em seu contínuo deslocar-se de um extremo a outro do continente americano.

Perto do arroio de Itaquiri, na jurisdição dos ervais de Tacuru-Pucu, Juan B. Ambrosetti recolheu a lenda de yasy yateré. Afirma que é difundida na província de Corrientes e no Paraguai. Yasy yateré toma a forma de pássaro e rouba crianças e moças bonitas. Os filhos dessas uniões são também yasys yaterés. Segundo Ernesto Morales (Leyendas guaranies), as gentes campesinas do litoral argentino crêem também nesse mito.

No Rio de Janeiro, informa Félix Ferreira, na fazenda de Santa Cruz, da antiga propriedade dos jesuítas, é crença geral entre os que ali são nascidos, que o caapira ou caipora, como é mais comum, tem por seu companheiro o saci pereira, um pássaro noturno de um pé só, que anda a desoras a cantar pelas estradas: "Saci pereira, minha perna me dói!" Há uma parlenda infantil assim:

Saci-pererê, de uma perna só — com esta variante:

Saci-pererê de uma banda só (Cachoeira, 1933).

Vejamos a associação das diversas crenças indígenas, modificadas depois do descobrimento pela corrente popular europeia.

Criam os nossos índios, como refere Simão de Vasconcelos, que havia espíritos malignos de que tinham grande medo: curupira (espíritos do pensamento); macachera (espíritos do caminho); Jurupari ou Anhangá (espírito mau, ou propriamente dito o demônio); o maraguigana (espíritos ou almas separadas que denunciavam a morte).

Curupira ou caapora (mato-morador) é um demônio indígena ainda hoje familiar aos caipiras com o nome de caipora. Tem o rosto voltado para trás, é muito feio e anda montado num porco-espinho. Pita no cachimbo e ai! do caçador ou do mateiro que o encontrar, se não tiver fumo para dar-lhe. Apresenta-se também sob a forma de um caboclinho. No Rio Grande do Sul, o caipora tem os pés para trás e é chamado também carambola (Luís Carlos de Morais, Vocabulário sul-riograndense). O caipira do vale, com seu amor pelo colorido, diz que acaipora é verde e cabeluda. O caipora, diz Castro e Silva em Os contos de Miquelina, é um preto velho de cabeça branca, muito grande. É cambaio, meio corcunda e anda com um pau na mão. Não é difícil traçar a origem da figura deste caipora — veio do medo que se tem aos pretos velhos macumbeiros.

Se não conhece o saci, leitor, ouça o que diz o meu velho amigo piraquara (Cachoeira, 1930): "O saci é um negrinho preto, zoiúdo, de uma perna só. Pita num pitinho sarrento e assobia. O pito é de canudo preto e o saci pede fogo, quando encontra gente no ermo".

Aí está. Esse saci é quase o caipora. Couto de Magalhães diz que o saci cererê é um pequeno tapuio manco, de um pé, com um barrete vermelho e uma ferida em cada joelho. Barrete feito de marrequinhas (flores de corticeira), diz Simões Lopes Neto — Lendas do sul, 1913.

Sabe-se que o saci é preto. Que tem uma perna só, que usa gorrinho vermelho, que fuma no cachimbo. Que é moleque. Que assobia. E que, às vezes, completando o seu estranho sincretismo com o caipora, é um tapuio manco, com uma ferida em cada joelho.Quem nunca teve notícia dele, leia O saci, de Monteiro Lobato, e verá as pitorescas diabruras desse negrinho de uma perna só.

Para finalizar, dois casos inéditos a respeito do saci.

Dona Maria do Seu Oliveira, que mora na rua Visconde, em Guaratinguetá (1943), me disse que viu o saci. Conta: "Quando eu era mocinha, morava no campo do Galvão, mais do lado da ponte que do lado da cidade. Não vê que eu ficava costurando até tarde, na sala fazendo serão. Então batiam na porta. A gente levantava, ia ver, não era ninguém. Uma coisa assobiava no escuro, cada assobio fino que doía. Nem bem a gente ia sentar, batiam na porta da cozinha. Quem não via logo que era o saci? Ia-se ver, o tiçãozinho assobiava no escuro. Ele gosta de fazer molecagem". Conta outro caso: "É preto feito um tição, o coisarruizinho. Eu vou contar. Meu pai punha os cavalos pastando no campinho. Pois de manhã cedo eles estavam cansados e com a crina feito brenha. Tão trançada que não se podia pentear mais. O remédio era a tosa braba. Montar o saci não podia porque tem uma perna só. Então se agachava em riba do cavalo e ia, plequeté, plequeté, campo fora atarracado nas crinas do animal. Deixava os cavalos em ponto de arrebentar de canseira. A gente de noite bem que via "aquele" coisiquinha preto, com um gorrinho vermelho, amontoado em cima da alimária, assobiando de gosto”.

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