terça-feira, 30 de julho de 2013

Figuras do meu mural

Ruth Guimarães

Guaratinguetá é, das cidades do Vale do Paraíba, uma das que mais simpáticas me parecem. Foi a cidade da minha adolescência, da minha atrevida, aventureira, gostosa adolescência. Meu avô, o português imigrado Juca Botelho, fora dar com os costados em Cachoeira Paulista, onde virou guarda-chaves da Central do Brasil – para quem não se lembra, o habitante daquelas guaritas de madeira à beira da estrada de ferro, cujos encargos principais eram o de sinalizar para os trens que vinham, com lanterna de carbureto, se o caminho estava livre ou se era defeso avançar, e de fazer manualmente a troca de trilhos para levar uma composição a mudar de um trilho para outro. Já aposentado, juntando ao salário modesto uns caraminguás resultantes do aluguel de três casinhas construídas no fundo do quintal e da venda de hortaliças que eu mesma ajudava a plantar. Bem, ajudar não era bem o caso, porque a minha tarefa era só molhar a horta – sob a supervisão do velho, que cutucava com a ponta da bengala o chão regado pra ver se o meu trabalho preguiçoso não tinha servido apenas para umedecer a superfície da terra. Ele bem sabia que trabalho de criança é pouco, mas quem não aproveita é louco. O velho Botelho suplantou a europeia sovinice para mandar a neta da predileção estudar onde havia curso de segundo grau. E lá fui, negrinha espevitada de cabelo esticado em tranças a ponto de me deixar com olhos orientais, ser aluna do Conselheiro Rodrigues Alves. Eu dizia aventureira, e quase disse venturosa, passagem por Guaratinguetá, mas era isso mesmo o que eu queria dizer. Quantas escapadas das aulas para tomar sorvete na Polo Norte... E quantas participações no programa da Rádio Clube, como cantora mirim, isso até que minha mãe descobriu e enterrou minha carreira com um sermão escandalosamente dramático: “Prefiro te ver morta a seguir essa vida de cantora!...” 

Pois em Guaratinguetá fui aluna de dois representantes da família Alckmin, de Pindamonhangaba. Dois tios do atual governador, em tudo semelhantes a ele, na voz calma e olhar firme, na retidão de caráter, no tradicionalismo valeparaibano, no humor ingênuo e leve do homem do interior. Dr. Geraldo, no Vale do Paraíba, é Geraldinho, naquele tratamento meio cúmplice, meio íntimo, dos eleitores para com o seu político escolhido. Joãozinho Alckmin e Andrezinho Alckmin, era assim que chamávamos, com diminutivos de vizinho de cerca, os professores, um de latim, outro de português. 

Num certo jantar promovido no Palácio dos Bandeirantes, quando Maluf era governador e eu atuava no Conselho Estadual de Cultura, reencontrei Joãozinho Alckmin. Decerto não se lembrou de mim, quantos romances de quantos volumes já haviam ocorrido na vida de cada um, mas a circunstância nos colocou sentados lado a lado. Eu esperava oportunidade de entabular conversa, mas ele se adiantou. Olhou-me curioso, por cima dos óculos, com o mesmo ar de simpática autoridade, e disparou uma pergunta, no vozeirão acostumado a classes barulhentas:

- A senhora leciona, dona?

É, Guaratinguetá é mesmo uma das cidades de que mais gosto, no Vale do Paraíba.

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