Ruth Guimarães
No Vale do Paraíba, onde a ignorância ainda é a edênica, antes da maçã, onde a miséria corre por conta da preguiça, como no tempo dos índios, onde a criação de gado é pastoreio, onde não se leu a carta de Vaz Caminha, naquele trecho que fala da terra e que “em nela se plantando tudo dá...”. Neste Vale do Paraíba, a fala brasileira é bem brasileira. Imigrante aqui só veio turco mascate, ou italiano, depois que teve dinheiro para comerciar. E comerciante não influi na língua, porque fala a língua do freguês.
Assim, aqui se colhem modismos regionais peculiares ao resto do Brasil, como a tendência para tornar paroxítonas as palavras esdrúxulas. Ouvem-se encurtados e facilitados os nomes: estômago – “estambo”, sábado “sáudo”, bêbado “beudo”. Já não se contam as inumeráveis palavras apocopadas – “chamá”, “dizê”, “fazê”; os “ll” e “ss” engolidos – as aféreses, como “nêgo”, “neguinho”, a iotização como em “fio” para filho, “trabaiá”, “mio” para melhor. Já não se fala na troca de “l” pelo “r” entre consoantes, antigo vezo luso, mais do que luso, clássico, do português casta linguagem, de Camões: “nebrina”, “praneta”, “crima”, “craro”. Já não se fala na curiosa troca do “b” pelo “g”, acusada em gumitá, por vomitar, pois de longe vem. “Guerra” já se origina do germânico “warr”. Não se fala igualmente de “largato”, por lagarto, de “cardineta” por caderneta, de “breganha” em lugar de barganha, que tudo isso são usos cotidianos em qualquer lugar do Brasil, terra onde a língua guarda uma curiosa unidade que continua e permanece dentro da evolução fonética.
Bem. Não se falará nessas coisas corriqueira, encontráveis em qualquer compêndio. Mas fora delas ainda muito que ver, ouvir e anotar.
O consonantismo valparaibano se aproxima singularmente daquele consonantismo camoneano, que é clássico e popular a um tempo, peculiar aos povos ibéricos. Refiro-me à troca do “b” pelo “v”. Só trocam o “b” pelo “v” aqueles que são vurros como na sediça anedota.
Mas no vale paraibano são principalmente os pescadores, a população ribeirinha, lavadeiras e beira-rio que passam os dias de cócoras nas chamadas praias, onde a margem se adentra pela correnteza em longas ponta arenosas, tiradores de areia nos portos rústicos, escorados com troncos tortos, o pessoal das olarias, a mais primitiva das indústrias, talvez a mais limpa e a mais sadia, ao ar livre e ao grande e jovem sol – toda essa gente troca o “b” pelo “v”, em algumas palavras. Assim, por exemplo, na palavra vassoura e no verbo varrer com suas variações pessoais e temporais.
No Vale do Paraíba, entre a gente simples, mais rústica e de vida mais primitiva, que conserva ipso fato o tipo do português arcaico, que herdou sabe Deus de que avós, diz-se: “bassora”, “barreu”, eu “barri”, “barrê a casa”. A primeira pessoa no plural verbal, pronome pessoal do caso reto – vamos – é pronunciada invariavelmente “bamo”.
E a outra palavra deturpada da maneira mais saborosa é a do próprio nome do rio piscoso, que sustenta tanta gente com seus peixes, sua água, sua argila, e é caminho, paisagem, divertimento, encanto e poesia. “Paraíba”, nome indígena, e portanto fora da influência portuguesa, influência fonética, digo, é dito assim “Praíva”. Assim, com aférese e troca. Saborosamente deturpado, como só esta amolentada e descansada gente poderia fazer com uma palavra. “Nóis pesquemo que não foi vida no Praíva”. E além da aférese, da troca de consoantes, ainda mudam o gênero do rio generoso. Revela-se ainda essa particularidade de consonantismo no substantivo “beira” e seu derivativo “beirada”. É comum ouvir-se: “vêra do Praíva” e “verada”. Digna também de nota é a locução exclamativa: “Que os berreu”, significando: Irra! Safa! Isto é demais!
Peculiaridade valparaibana que, creio, ainda não foi registrada, é a troca de consoantes: “z” pelo “g” e “d” pelo “v”, como nestas curiosas alterações: “frangido” (franzido) e “paviola” (padiola).
É digna de registro ainda a troca de “s” pela palatal “ch” e vice-versa. Assim temos: “corça” (colcha), “corção” (colchão), “carchado” (calçado), “porchão” (porção).
Nenhum comentário:
Postar um comentário