segunda-feira, 27 de maio de 2013

Mudança

Ruth Guimarães

O rio era o rio. Negro como o negro aço, sem revérberos, sem luz, sem lambaris, ah! Sem luz ah! Sem seus peixes de prata! Nas águas sem luz, não se debruçava o céu, nem as nuvens, mas apenas o negror da sombra a ramagem. E era feito de silêncio e óleo espesso. E nas barrancas o ermo principiava se prolongando indefinidamente pelas margens desertas. Havia uma ponte. Havia uma ponte sem ninguém. E havia uma árvore, muitas árvores sem pássaros. E havia um caminho. Longo, sem caminhantes, poeirento, escuro, com pedras pontudas e terrões de ásperas arestas. As plantas que eu vi e contei, dei-lhes os nomes que sabia. Amor-seco e picão e arranha-gato e dormideira e juá venenoso e fedegoso e cardo. E cipó enredado no guatambu e moitas espinhentas de rosinha maldita. Maçã de lobo eu vi. Veneno poderoso de fazer bolinha para cachorro danado. E palma-de-satanás, eu vi. E galharia seca de velhos angicos assombrados. E vi os animais e dei-lhes o nome que sabia: ratazana-do-campo, de presas temíveis, em pulos tortos, pelo capim castigado de soalheira. E quijara do banhado, e negros escaravelhos de mil patas negras, avançando devagar, entre excrementos. Pois eu não soube o que houve, que a paisagem mudou tanto. O rio ainda é o rio. Negro como o negro aço, mas com gritos de luz em cada onda, onde o sol se esparrama e cintila e salta, coriscando; e onde uma lavandisca escreve hieróglifos, riscando a água, e onde o martim-pescador de longo bico sacode as asas, esparrinhando gotinhas de luz para todos os lados. O rio está claro, tanto que se vêm no fundo os lambaris de prata, de rabinho vermelho. Relâmpagos se cruzam, quando as marrecas se perseguem aos gritos sobre as águas. Marrequinhas brancas de penas verdes cintilantes. O céu nem pode parar, numa tremura que lhe comunica o rio. Deslizam as nuvens formando castelos e carneirinhos. E aquele campo enredado, que houve com ele? Porque está lindo assim, com um vida assim e uma alegria assim? Será por que a rosinha maldita espirou alva e leve entre a folhagem e os espinhos? Será porque o juá penugento se enfeitou de bolinhas vermelhas? Será porque um casal de namorados se debruçou na ponte, sobre a grade rústica e espiou com olhos ternos as voltas do rio? Será porque uma criança agarrou o besouro cascudo e o achou tão engraçado, tão liso e brilhante e com tanta perna? De tantas coisas que ali estavam ontem e hoje as belas? Ai, o rio era o rio e era esta ponte aquela ponte, e era este mato aquele mato, na árvore estava o pássaro, na manhã a luz, o amor e a criança, no silêncio a beleza, para quem tinha olhos de ver e ouvidos para ouvir.

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