quarta-feira, 8 de maio de 2013

Cena nº 2 no bar de JQ

Ruth Guimarães

A luz é baça, não deixa ver direito os rostos, que aliás são por si meio imprecisos, de traços sem relevos, e de cores que a doença e os maus-tratos diluíram. Rosto de quem não lê, não pensa, não vive, vegeta, rola por aí até morrer. 

A expressão mudou para as mãos, ah! estas mãos que arrancam de um áspero labor o pouco destinado ao pão de cada dia! Mas precisam de um incentivo, de alguma coisa que os tire do não-ser, do não-querer, e o encontraram na música, se é que se pode chamar de música a barulheira que certas noites, antes das dez, João Quadra suporta e talvez goste. Depois de um dia cheio de muito encontrão, no sentido figurado e no próprio, lá pelas oito, o bar está cheio de uma gente muito especial e um que é mais especial do que os outros. Esse chega, apanha o violão sem dono, que mora do lado de dentro do balcão, se empoeirando, tempera-o de manso, com amor. Mãos brutas deslizam pelo pinho, fazendo-se leves, como que acariciando um corpo de mulher. Não demoram os acordes, ele começa sempre com os acordes, tem alma lírica e melancólica, nuançada em sustenidos e bemóis. Depois canta, o que como desabafo é ótimo e mais não direi. Os sambas lhe saem meio inseguros, contando histórias muito doridas desta vida filha da mãe. Tem um gosto de sofrer bem sofrido, bem pisado, e um modo de confirmar a dor no coração erguendo as sobrancelhas e baixando as pálpebras. 

Sábado não variou a sua atuação. Chegou e nenhuma comoção lhe marcou a entrada, de acostumados que todos estão com tanta mágoa. Pegou o pinho, derreou a cabeça encostando-a ao braço do violão, enquanto os dedos magros dançavam nos tremidos acordes. E lá veio, em vez dos sambas do costume, de envolta com muitos suspiros e muita vida brava carecendo de sair também da alma, uma valsa das tristezas brasileiras, coisa de mal-aventurado e mal-amado. Como as valsas da esquina do festejado maestro e que Manuel Bandeira chamou carinhosamente de safadinhas. Pois era uma valsa safadinha. Solou sentidamente, transbordou, chorou sons graves do bordão e gemidos fininhos das primas. No bar aquela algazarra. Muita gente de quina, olhando. 

E foi ele acabar de tocar, tremelicou outra vez a introdução, pingou o final e olhou triunfante em torno. Como ninguém ouvira a valsa, ninguém notou que acabou. “Eh! valsa!” – que ele disse, forçando a atenção. Alguém lascou a paleta num cavaco em outro canto, de repente irrompeu um chorinho veloz, repenicado, o homem do pandeiro se danou tocando com as mãos e os cotovelos, um tamborilava na mesa, outro na caixa de fósforos, outro batia o pé. “Eh! valsa!” – repetiu o seresteiro, mais alto, mais admirativo. E como ninguém ainda desse tento nele, nem no seu sentimento, glosou irônico: “Valsa bonita, valsa linda, pra quem compreende musga!” 

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