segunda-feira, 6 de maio de 2013

Carta a Mário de Andrade (II)

Ruth Guimarães 

Tinha eu vinte anos e pensava que sabia escrever. O mundo era inteirinho meu, largo, imenso, doação. E quanto me devia o mundo em troca, talvez, de quanto me fora retirado! 

Então escrevi a carta. Nela dava conta de algumas coisas que estava fazendo, que para mim, evidentemente, eram muito importantes. 

Devo lembrar-lhe de que se tratava de uma pesquisa sobre o Demônio, vivo e atuante no meu Vale do Paraíba. Trabalho sem técnica nenhuma. Acabei descobrindo que aquilo lá era folclore - e tal ciência me era desconhecida. Consultava livros misturando-os de maneira inconcebível. Havia os mestres, sim, havia, mas em meio de muito refugo. Da linguagem nem é bom falar. 

A sua resposta chegou dois dias depois, dois dias, não mais, escrita a mão, num cursivo elegante, correta, certinha, você me tratando de Senhora Dona. E ali vinha uma grande lição de honestidade intelectual: “Muita gente pensa” – dizia você – “que Folclore é pra gente se divertir.” 

O pior é que estava mesmo me divertindo. 

Fui à sua casa. Você me convidou. Leu o que eu escrevi e disse: “Essa linguagem...” 

Uns escritores da rodinha literária da drogaria Baruel, que sabiam de tudo, me perguntaram (isso bem mais tarde), se é que não estavam afirmando: 

- Você foi procurar o Mário? 

- Fui. 

- E ele...? 

- Atendeu. 

- Você aprendeu? 

- Muito. 

Você tinha percebido, creio, que eu não era de muito falar. Reescrevi tudo. Alinhei considerações. Conduzi raciocínio. Terminava com uma pergunta: “Está claro o entrosamento de tradições?” Você leu tudo. Até o fim, atento, minucioso. Voltou a uma página já lida. Ergueu aqueles olhos castanhos, insondáveis. Confirmou, como se fosse o fim de uma conversa: “Está claro.” 

Um dos frequentadores da Baruel chegou com uma novidade: 

- Mário anda perguntando por você. 

- É mesmo? 

- Ele disse: Por que aquela menina não voltou aqui? Achei uns defeitos na escritura do que ela me apresentou e ela reagiu à altura. 

Na ocasião não dei importância a esse elogio altíssimo. 

Havia aprendido com você duas verdades: uma, que só tem direito de errar quem sabe o certo. A outra é que o certo eu mesma é que deveria encontrar. E eu procurei, padrinho Mário. 

Eu procurei. 

Eu queria ir contar pra você quanta coisa acontecia. Que o Velho costumava dizer: “Mário é a vítima do Modernismo”. 

Ah! São Paulo dos anos 40, neblina, garoa, frio, uma onda de renovação, tantos moços tentando abrir caminho, o dragão da guerra devorando o mundo, e você Mário, bradando, no salão do Clube dos Engenheiros, ou aos socos, numa das mesinhas do Franciscano: “O que fazem esses moços que não brigam com a gente?” 

Ao mesmo tempo, na drogaria Baruel, ponto de encontros dos novos, o velho Amadeu de Queiroz cobrava: trabalhar todos os dias, escrever todos os dias. Eu já tenho quase noventa anos e escrevo durante duas horas, todos os dias. 

E eu queria contar que, enfim, esporeada pela conversinha do Velho, acabei tirando da gaveta os originais de um romance, em que, ah! você ia se admirar, tenho a certeza, eu escrevia do jeitinho que você recomendava: fácil, sincera, descuidada, prosa brasileira sem nada dentro, mas com aquela filosofia que somente se encontra na linguagem do povo. E tudo isso não por mérito meu, mas porque, modéstia a parte, eu sou caipira mesmo, e era, então, uma caipirinha sem nenhum polimento. 

Era isso. 

Eu queria ir à rua Lopes Chaves e contar que o linguajar arrevesado, tão português, que eu andava perpetrando era uma espécie de semostração de matuta, que põe sapatos de salto para is casar na igreja e depois não sabe andar. 

Eu me dizia: “Amanhã eu vou lá (Tanta coisa pra contar). 

E no outro dia eu sempre ia amanhã, como os macaquinhos jurupixuna, da boca preta. 

Um dia, sem mais nem menos, você me morreu. 

Logo depois, amigo Mário, quando já não se ouvia a sua voz poderosa, apareceu Guimarães Rosa, o sol da geração 45 e eu apareci também, estrelinha, com aquele romance chamado Água Funda, que não sei porquê não se chamou Água corrente. Ao mesmo tempo, Domingo Carvalho da Silva, o Poeta, alinhava esplêndidos versos. Era uma revolução? Era. João Cabral de Mello Neto, inteiramente original, contava da Morte e Vida Severina. 

E aí, veja como são as coisas, aí descobri que não voltei à rua Lopes Chaves porque não quis. Que estava me enganando com aquele amanhã, amanhã. O que eu queria era voltar com alguma coisa de valor nas mãos, queria escrever de verdade, queria, humilde ou vaidosamente, nem sei, depositar na sua mesa de trabalho uma joia, uma só, Mestre, e perguntar: “Não está claro que aproveitei a sua lição maior?” E você me diria, sério, uma ruga entre as sobrancelhas, a boca generosa: “Está claro.” 

Agora que expliquei porque fui à sua casa em busca da verdade, e que confessei porque ia todos os dias amanhã, e afinal deixei passar a oportunidade mais linda da minha vida, vou refazer o motivo real da minha ausência de você. Não, Mário. Eu não aprendi literatura, nem escritura, nem sequer folclore com você na rua Lopes Chaves. Foi mais profundo e mais vital do que isso. Você me mostrou o caminho. E depois de saber o caminho, a mim me cabia, sem mais auxílio, caminhar. 

Grande Mário, Mário risonho, Mário bondoso, Mário vozeirão, Mário que eu amo de amor demais, eu sei que esta carta não será respondida (e no entanto a escrevo), sei que não será respondida nem daqui a dois dias, nem nunca mais. 

Ruth

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