Ruth Guimarães
Zico Mineiro foi a figura máxima da noite. É esguio e negro, com um pixainzinho arrepiado e rugas transversais na testa. A voz é gutural o riso aberto em a. Zico tem uma vida complicadíssima. Dificuldades financeiras e dificuldades com as garotas. Canta sobre o amor, usando quadras do populário — que é o que se chama cantar por cima — na saborosa linguagem popular — ou improvisando — o chamado cantar por baixo. Ele vem logo para o primeiro plano dos cantadores, não como cantador, mas porque é demasiadamente humano, humano de um modo denso e completo que impressiona. E tem uma comovente simplicidade. Conseguiu arrancar dos presentes palmas risos e assobios. Impossível ouvi-lo indiferente, embora se possa admitir — com alguma surpresa por, se gostar dele — que às vezes ele canta mal, como às vezes canta muitíssimo bem. Conseguiu enternecer, encantar e fazer rir. É o mais humano dos cantadores. O mais feio também. E tem uma vaidadezinha que é uma delícia. Acabada a cantoria, lá estava ele todo ansioso, querendo saber se tinha se saído bem. Se se saiu bem? Vejam isto que ele cantou na cana-verde:
Tenho dois anér no dedo
Um é de ouro outro é de prata,
Uai! Uai!
Um é de ouro outro é de prata,
tenho dois amor no mundo
uma é branca, outra é mulata.
Mas o diabo é que o Zico topou cantador pela frente, e a coisa esquentou. É Agostinho Aguiar quem responde:
Que uma é branca outra é mulata,
Mineiro ocê falou!
Roda morena!
Mineiro ocê falou,
mas tou bem desconfiado
que a cigana te enganou.
Ouvem-se grandes risos aprovativos. Os repentistas aliam, num sincretismo incrível— analfabetismo, poesia, sangue-frio, ingenuidade, e um completo "estar em dia" com a vida piracicabana. Zico Mineiro cantou mais uma trova do populário:
A folha da bananeira
de madura amarelou.
Uai! Uai!
De madura amarelou,
a boca do meu benzinho
de tão doce açucarou.
E lá vem a pronta resposta de um repentista atualizado:
De tão doce açucarou,
foi o que o Zico falou.
Roda morena!
foi o que o Zico falou
foi por isso que o açúcar
tão depressa racionou.
Consegue-se falar com os violeiros, nos bastidores. Estão todos reunidos e olham uns para os outros, indecisos, numa evidente defensiva. Mas são delicados, têm um certo traquejo e a consciência de terem cantado "no certo". Agostinho Aguiar convida gentilmente para o cururu no outro dia.
— Tem cururu lá em casa às três horas.
Cumprimentam e saem sobraçando as violas, sonhando quem sabe que sonhos?
Com certeza que
a boca do meu benzinho
de tão doce açucarou,
para compensar a escassez do outro açúcar.
Nenhum comentário:
Postar um comentário