Ruth Guimarães
Depois de tanta briga, a partir dos modernistas, a partir de suas pesquisas sobre as palavras em si, em que tomaram posição os literatos, os gramáticos e os analfabetos, chegou-se finalmente à conclusão de que não há língua brasileira.
Primeiro porque a diferença entre língua brasileira e portuguesa é simplesmente de vocabulário e de fonética e, se a fonética não serve para formar nem o dialeto, quanto mais um idioma independente – o vocabulário é elemento de estilo e não de língua.
As modificações estruturais ainda não foram feitas em mais de quinhentos anos no português do Brasil, e a morfologia é exatamente a mesma, cá e lá, não diferindo os morfemas de número, de gênero, de grau, de desinências, pessoais e temporais dos verbos, sendo a estrutura de frase fundamentalmente a mesma.
E, assim, temos uma língua portuguesa com estilo brasileiro, embora caminhemos, não muito rapidamente, para a dialetação.
Sendo a língua um fato social, um organismo vivo em evolução, dependendo do meio e das raças, naturalmente estamos diferençando a fala brasileira da fala portuguesa. Os acordos ortográficos não põem pedras no caminho desta evidência. Porém os fatos não podem ser percebidos por gramáticos dados a acordos, mumificados nos conceitos gramaticais, e também não podem ser percebidos pelos leigos, igualmente dados a acordos.
Leite de Vasconcelos, cujo testemunho é insuspeito, já nos falava há muito, no seu trabalho sobre dialetologia, da originalidade da pronúncia brasileira.
Sofrendo fenômenos de aculturação, próprios do contato direto e contínuo com o linguajar do negro e do índio, o português ultramarino teria que se abastardar primeiro, teria que se decompor para se reestruturar, compondo a frase de maneira mais consentânea com a gente que o falava, com o novo clima, com as novas necessidades de um país novo. Para nos cingirmos exclusivamente à fonética, nota-se o alargamento das vogais, a nitidez dos sons orais e anasalados, a extensão preguiçosa das sílabas, a tendência para tornar paroxítonas as proparoxítonas, tudo isto atribuído à fala aberta e descansada do índio, esse que nunca tinha pressa. E ainda há a doçura, o arredondamento, os diminutivos em demasia, a linguagem familiar suavizada em “iii”, em sílabas repetidas, acarinhada, rolada na língua e nos lábios, apocopada, quase sensual, sensual mesmo – diríamos – cuja meiguice se deve ao negro, ou melhor, á negra, à mulata que ama o sinhô – essa nega fulo do gostoso poema de Jorge de Lima – se deve à mucama que agrada a sinhazinha, à babá que aleita o bebê filho do branco, e, em nossos dias, à gente mestiça de todas as cores, de todas as gamas, do amarelo claro ao marrom queimado, que requebra no samba-choro, no verso, nas letras de cunho sentimentalmente brasileiro, na música, na pintura de cores quentes, onde se espelham o sol, a terra, as raças, as gentes. Doçura, sensualismo, arroubo, doçura e misticismo, doçura e amor e música, doçura e compreensão, acusados a partir do modernismo, de maneira mais nítida e consciente, mas vindo desde Castro Alves, vindo desde Gregório de Matos, passando por Jorge de Lima, por Mário de Andrade, por um Cassiano Ricardo.
O modernismo, cujas conquistas somente agora começam a aparecer, tem no seu patrimônio, no seu passo para a frente, essa joia que é a palavra, as pesquisas sobre a palavra, sobre o significado, sobre o conteúdo da palavra, sobre a propriedade da palavra, sobre a aderência íntima da palavra à realidade, sobre a correspondência entre a palavra e a Verdade. Tirando-se os exageros de revolução inicial, que transtornou o postulado, emprestando à palavra demasiada objetividade, vemos que, pouco a pouco, veio uma fluidez maior, um sentido novo, enriquecer a palavra brasileira.
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