Ruth Guimarães
Se alguém cantasse que
Domingo
é dia de pescaria
estaria dizendo a verdade em qualquer
lugar do mundo, menos em Cachoeira Paulista, às margens tranqüilas do tranqüilo
Paraíba. Ah! porque em Cachoeira, todos
os dias que Deus dava eram de pescaria
...
e lá vou eu,
de
caniço e samburá...
A pesca no Paraíba, no tempo em que
havia peixe, era mais um capítulo da comprometedora História deste Brasil,
deitado eternamente em berço esplêndido sendo que o prólogo era o “plantando dá,
não plantando dão...”
O piraquara era a continuação em linha
reta do bugre. Andar numa canoinha, rio
abaixo, rio acima, não passava de uma aventura.
O rio nos levava na garupa, o peixe pula pulando, relevo de prata sobre
prata. Apenas aguardava que o pegassem,
que não tinha outro ofício. E o rio era
limpo. Prata. Pescar era preguiçar. Trabalhar pra que? Vamos pescar, minha gente,
que ninguém é de ferro!
Apesar de ser o rio paulista por
excelência, o Tietê nada me diz como rio, mas como poema, nas palavras
comovidas de Mário de Andrade. Já o
Paraíba, que hoje está abandonado, seco e sujo, é meu amor cotidiano. Conheço-lhe a lucilação ao sol, o ondular ao
vento, o murmúrio à noite, o frio em julho, o morno em janeiro, as doces
curvas, a travessura das corredeiras, a suavidade dos remansos, a garridice dos
marulhos junto às pedras. Amo-o bravio,
mordente, tranqüilo, sombrio, luzente, lindo, plano, aberto, largo, claro,
audaz. Já o senti hostil, já o senti
temeroso. Já o senti companheiro.
Conheço-lhe as pedras negras, o banzo,
a alegria, os ingazeiros das margens, os seixos do fundo, os iguapés de flores
lilases. E conhecia (quando havia
peixes) todos os seus peixes de ouro e prata.
A sua fauna talvez fosse igual a de
todos os rios paulistas. Não sei. Os mais freqüentes dos seus peixes eram o
lambari e a traíra, esta a rainha da culinária valeparaibana, em principal em
época de jejum e de abstinência de carne, naquelas quaresmas antigas, coloridas
de negro e de roxo.
Eram duas qualidades de traíra: a de
dois palmos de comprimento, cinza carregado, quase negro nas costas, escamas de
prata, que habitavam o fundo no meio do rio.
A vulgar, a familiar, a gostosa, a malaxada traíra.
E havia outra, que a molecada pescava,
ou melhor, caçava com peneira, nos pocinhos da várzea, em época de enchente,
navegando no bacião da avó, que servia como banheira nas casas. Essa era curta, redonda, esverdeada e do papo
amarelo.
Mas adiantava o trabalho de pescar?
Dava um trabalhão danado, arrastar o bacião era o décimo terceiro trabalho de
Hércules, e quando se chegava vitorioso em casa, com uma caçarola cheia de
traíras, alguém já vinha aos gritos:
Joga isso fora, menino. Isso aí não é peixe! É sapo!
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