domingo, 28 de abril de 2013

Pescaria no rio, meu rio


Ruth Guimarães

Se alguém cantasse que
                        Domingo é dia de pescaria
estaria dizendo a verdade em qualquer lugar do mundo, menos em Cachoeira Paulista, às margens tranqüilas do tranqüilo Paraíba.  Ah! porque em Cachoeira, todos os dias que Deus dava eram de pescaria
                        ... e  lá vou eu,
                        de caniço e samburá...
A pesca no Paraíba, no tempo em que havia peixe, era mais um capítulo da comprometedora História deste Brasil, deitado eternamente em berço esplêndido sendo que o prólogo era o “plantando dá, não plantando dão...”
O piraquara era a continuação em linha reta do bugre.  Andar numa canoinha, rio abaixo, rio acima, não passava de uma aventura.  O rio nos levava na garupa, o peixe pula pulando, relevo de prata sobre prata.  Apenas aguardava que o pegassem, que não tinha outro ofício.  E o rio era limpo.  Prata.  Pescar era preguiçar.  Trabalhar pra que? Vamos pescar, minha gente, que ninguém é de ferro!
Apesar de ser o rio paulista por excelência, o Tietê nada me diz como rio, mas como poema, nas palavras comovidas de Mário de Andrade.  Já o Paraíba, que hoje está abandonado, seco e sujo, é meu amor cotidiano.  Conheço-lhe a lucilação ao sol, o ondular ao vento, o murmúrio à noite, o frio em julho, o morno em janeiro, as doces curvas, a travessura das corredeiras, a suavidade dos remansos, a garridice dos marulhos junto às pedras.  Amo-o bravio, mordente, tranqüilo, sombrio, luzente, lindo, plano, aberto, largo, claro, audaz.  Já o senti hostil, já o senti temeroso.  Já o senti companheiro.
Conheço-lhe as pedras negras, o banzo, a alegria, os ingazeiros das margens, os seixos do fundo, os iguapés de flores lilases.  E conhecia (quando havia peixes) todos os seus peixes de ouro e prata.
A sua fauna talvez fosse igual a de todos os rios paulistas.  Não sei.  Os mais freqüentes dos seus peixes eram o lambari e a traíra, esta a rainha da culinária valeparaibana, em principal em época de jejum e de abstinência de carne, naquelas quaresmas antigas, coloridas de negro e de roxo.
Eram duas qualidades de traíra: a de dois palmos de comprimento, cinza carregado, quase negro nas costas, escamas de prata, que habitavam o fundo no meio do rio.  A vulgar, a familiar, a gostosa, a malaxada traíra.
E havia outra, que a molecada pescava, ou melhor, caçava com peneira, nos pocinhos da várzea, em época de enchente, navegando no bacião da avó, que servia como banheira nas casas.  Essa era curta, redonda, esverdeada e do papo amarelo.
Mas adiantava o trabalho de pescar? Dava um trabalhão danado, arrastar o bacião era o décimo terceiro trabalho de Hércules, e quando se chegava vitorioso em casa, com uma caçarola cheia de traíras, alguém já vinha aos gritos:
Joga isso fora, menino.  Isso aí não é peixe! É sapo!

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