domingo, 28 de abril de 2013

Os temas de Cassiano Ricardo

Ruth Guimarães 

A primeira vez que encontrei Cassiano Ricardo foi numa das numerosas edições de Martim Cererê. Cada uma diferente da outra. 

Em idade de conhecer a vida, principalmente pelos sentidos, a poesia fortemente objetiva, sensual e colorida de Cassiano Ricardo, da fase verde-amarela, e tendo além disso gosto e cheiro, foi para mim de influência tão marcante que até hoje se faz sentir. 

Eu vinha, como vinham todos os adolescentes do meu tempo, de Alberto de Oliveira, de Raimundo Correa, de Alfonsus de Guimarães, de Olavo Bilac. O modernismo ainda não tinha frutificado, embora tivesse florescido. E vinha também de Guilherme de Almeida. 

Já gostei e já desgostei de Guilherme de Almeida. E é claro que jamais deixarei de admirar o fino lavor de seus poemas, o “savoir faire” tão seu e único, a arte de fazer o que quer com os versos, inclusive dizer tanta coisa linda sem nada dentro. E então, sem o mínimo preparo, caí de cheio no Martim Cererê. 

Tinha acontecido qualquer coisa como o milagre ocorrido nas Bodas de Caná. Alguém, o panteísta enamorado, tinha transformado a água em vinho forte e bom. “Tu guardaste até agora o bom vinho...” 

Esses poemas foram a Porta. Por ela penetrei no mundo mágico em que poesia é poesia, é mistério e não segredo ou disparate. Então aprendi quase todos os poemas de cor, à força de os ler. Ainda hoje posso citar de memória alguns trechos, como aquele das bananeiras que aplaudiam certo Rui Barbosa dos pássaros: 

As bananeiras comovidas 
de folhas lânguidas e calmas 
como se fossem mãos compridas 
erguidas no ar, bateram palmas. 

Em verdade, de todo o verde-amarelismo só se salvou Cassiano Ricardo. Eu fui um dos seus papéis carbono. Aos quinze anos perpetrava uns versos assim: 

“Meu avô, que teve o seu natal em Portugal, dos trigais do Mondego e cachopas do Minho. E veio como os heróis, pelo infinito de um caminho, que não se sabe bem se é céu, se é mar. Porque o mar subiu aos céus, dando boléus de ondas verdes, porque o céu, dando risada do sol, entrou no mar.” (E quando aconteceu isto, meu irmão?) 

“Quando todo o Brasil 
era um simples rumor de águas claras.” 

Felizmente existe um deus protetor das adolescentes sentimentais e dos poetas sem juízo. Não sei porquê a mesma deidade que me instigou para plagiar Cassiano, me impediu de publicar os versos, e com esta boa ação, anulou a má. Eis que eu enveredava por senda perigosa: a da calúnia. Afirmava que esse meu avô, em certa noite de neblina, ao vir um trem, não discerniu se o clarão era do farol da máquina da Central, ou se era o sol. Meu avô, que era simples guarda-chaves, nunca ficou sabendo dessas bebedeiras líricas. 

É isso aí. Contudo, a dívida maior que tenho com Cassiano Ricardo é ter, por ele, me emancipado dos simbolistas e dos parnasianos. Da força jovem de sua poesia surgiu a renovação, que não percebi quando ocorreu, mas foi decisiva para a formação da espécie de literatura que faço hoje. Só não me fez poeta, porque o poeta já nasce feito. Ninguém se faz, mas acontece poeta.

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