Ruth Guimarães
E pois que tive uma infância embalada pelo som dos sinos, é difícil deixar de relacionar a ausência dessa música com o estado geral de espírito, embora uma coisa nada tenha a ver com outra. Isto é, tem, como resultante e não como causa.
Ora, sucedeu que houve certa mudança muito súbita de ritmo, e, sem mais nem menos, estamos despencando num elevador desarranjado com o fim da viagem perdido nos longes. Mudou a música, mudou o compasso. É vertiginoso. Ninguém sabe para onde vai, sem se algum dia poderá parar, antes do final definitivo. Aí está. E alguma coisa entrou de mansinho para o reino do nunca mais. Como por exemplo, o lento e compassado badalar dos sinos, à hora da ave-maria, anunciando para dali a uma hora, a novena. Quem sabe ainda o que é novena? Não sou quem irá dizê-lo. As palavras têm o desgraçado condão de tirar o encanto de certas coisas, quando se tenta descrevê-las. Mas era bem de manhãzinha que começava a música dos sinos, no chamado para a missa matutina, aquela rezada muito cedo, com a igreja sombria à luz das velas, só assistida pelas zeladoras de preto, de fichu na cabeça grisalha e o coroinha de lá para cá, um só, baloiçando de leve o turíbulo. E o incenso, e o ar frio, e a névoa fininha lá fora, e o padre num esplendor de doirados, e a toalha muito branca, do altar, de linho aberto em crivo. Na elevação, quando as cabeças se curvavam, o sino batia com força. Glorioso, ressonante, sonoro dentro do coração e Deus estava ali, realmente.
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| Foto de Botelho Netto |
Ao meio-dia, outra rajada bimbalhante, festiva, amanhã tem pão, me dá um vintém, galinha recheada, peru também, que acompanhávamos gritando a plenos pulmões a buliçosa parlenda. E todos os dias havia uma notícia: o sino era boletim informativo. Quando tocava fora de hora, já se sabia, morrera alguém. Homem? Mulher? Criança? O sino contava, no variar as batidas, muito sonoras no ar sereno. Se começasse com o vozeirão dom-dom-dooom, era homem e muito velho talvez, o Chico da Venda, coitado! O Lombardi, boa alma! Quando vinha umas oitavas acima, dim-dim-dim, ah! Foi a mulher do Costa, pobrezinha, doente há tanto tempo, e Risoleta, - a Leta? Não diga!? Já estão se acabando as faladeiras da cidade... Mas quando morria criança, anjinho, com as portas do céu abertas de par em par para ele, - então o sino delirava de contentamento! Pois não iria para Deus, pois não deixaria de passar fome? Pois então era vida morar em casa de pau-a-pique, dormir em esteira, ficar embrulhado em trapos, passando frio? Deus o acolhesse e o abrigasse e o confortasse, dim-dim-dão, din-delém, dim-delém delém-dem, delém-dem, delém-dem!!! louco varrido o velho sino.Filho do Inácio Bugre, então era enterrado com música de sino e foguete.
Tudo festas, que a morte não vinha nas rodas dos ônibus em disparada, nem despencava do céu com os destroços dos aviões incendiados, mas acontecia lenta e mansa, dava tempo de chamar os parentes, dava tempo de compor as mãos emaciadas, acender vela, rezar a oração do anjo Custódio, enquanto o agonizante numa sororoca de arrepiar se despedia a custo, estertorando.
Há quanto tempo não se ouvem mais os sinos! O rumor aqui em baixo é demasiado e eles se calaram desanimados. E quando entro nas igrejas desertas em todas as horas, e vejo o inútil esforço para atrair os fiéis – missas em vernáculo, fora de hora, para não sacrificar muito o devoto, e permissão de muitas coisas, e toaletes esquisitas nos templos, e a abolição de jejuns -, penso que quem sabe umas boas bimbalhadas e essa voz de bronze faria milagres.
Adiantaria? Alguém ouviria? Mais um rumor apenas, entre os muitos que nos atazanam os ouvidos, pois ninguém mais sabe entender dessas mensagens.
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