segunda-feira, 22 de abril de 2013

Lição de filologia

Ruth Guimarães

Foi assim que ele falou:

- Brioso era o meu preferido. De boa estatura, alto, comprido, pescoço largo e curto e boa corpulência.

Botelho Netto
Foto de Botelho Netto
- Era bonito...

- E não era só beleza. Também era obediente, educado. Era um doutor. Bastava um psiu! Para que parasse. E parado ficava, sem nervosias, até receber outras ordens. Seu lombo era liso e bonito.Tinha orelhas bem formadas.

E José Barreto falou uma coisa, que eu nunca havia reparado em burro nenhum:

- Tinha um olhar rápido. Ele não era essas melancolias filosóficas que burro tem, muito pensativos, de pálpebras baixadas, mascando o capim e pensamenteando. Para lhe falar a verdade, sá dona, não gosto nem de burro nem de gente pensativos demais. Mascar a vida leva a descobrir, lá no fundo da alma, acontecências que a gente não gosta que venham à tona.

Não foi assim que o tropeiro falou com tantos ffs e rrs, mas o sentido era esse. Procurei traduzir o sentimento dele, que repetia, como o mais belo dos atributos de Brioso: tinha o olhar rápido. Repassei num instante, quantos burros conhecera: o Trovão, preto e genioso. O Sete de Ouros, do Guimarães Rosa, que num dia só de sua vida se definira para todo o sempre. O Candango, do verdureiro, alazão, baixo e magro, cheio de manhas.O baio Retrato, da Olaria. O manco Lalau. O Boneco, o Faísca, o Mulato, o Teimoso, o Janjão, o Gaúcho, o Ciclone, o Sereno. Animais de sela e arado, de carroça e cangalha, burro de tropa. Burros de Almanjarra. Muitos e tão diferentes entre si, como os humanos diferem uns dos outros. (E como não há duas folhas iguais numa floresta.) Mas todos com um brilho líquido nos mansos olhos castanhos, uma luz que se diria do pensamento, pois não se acusa gratuitamente, por certo, o burro de filosofar.

E disse mais o José Barreto, paulista de fala grossa, de Presidente Bernardes, na sua compassada elegia ao Burro Brioso. Que tinha olhos grandes. Por certo. Grandes, puxados nos cantos, um traço exótico, oriental. Pois, olhos grandes, puxados nos cantos, com longas pestanas cerdosas, por onde escoa o olhar a sua luz tranqüila. E tinha focinho preto. Preto e úmido e longo, com lentos gestos. Parecia que entendia. Posta a comida no cocho, era só chamar e lá ia ele no trote, em direção certa, um tanto inclinado para a frente.

E disse mais José Barreto, homem da roça, controlado, enérgico, paciencioso, o seu tanto solene:

- Afinal de contas, o meu burrinho Brioso era muito importante pra mim. Nos momentos em que trabalhamos juntos, nunca me deu nervosias, mas sim, orgulho de ser o seu dono.

- E por isso o chamou Brioso – murmurei eu – porque sendo um burro, tinha educação e dignidade. E era trabalhador e corajoso. Não procurava aumentar a sua ração no coxo, nem estava descontente com o que recebia...

José Barreto me olhou com uma surpresa que não entendi.

- Mas não, dona. Nome seu era Brioso, porque era preto, de um preto liso e úmido que brilhava ao sol...

Foi aí que me caiu a ficha:

- Brilhoso! disse eu.

E o José Barreto, num enlevo:

- Brioso!...

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