quarta-feira, 24 de abril de 2013

Estações

Ruth Guimarães

A janela não é um retângulo azul como a do poeta. Emolduram a paisagem dos desbotados verdes, pontilhados com a ferrugem das flores de mangueira, de tênue lilás com que se tocam os cinamomos. A um canto, sorri o vermelho cintilante dos balaõzinhos de pétalas apinhadas, como lábios ensaiando beijos. Por tudo, pinceladas de cinzento: no céu, no ar, no chão, nas folhas, nos velhos troncos, tudo esfumaçado e poento das ventanias de agosto.

Quem afirmou que no Brasil só há, a rigor, duas estações, a da seca e a das águas, ou a do frio e a do calor, não espiou dias e dias seguidos, por uma janela como esta. Mesmo que desaparecessem as folhinhas de parede, o rádio e a televisão, os jornais e as revistas, quem estivesse perdido desarvorado numa paisagem deserta de gente saberia agora que é agosto, pelos clarões amarelos nas folhagens pelos toques indecisos e nuanças vagas, pela galharia hirta do pinhão bravo, sem uma folha, pelo pé tão seco despido dos seus quentes esplendores e pela ramada desnuda da paineira.

Lembro-me dos plátanos espectrais, folhas secas amarelas arrastadas pelo asfalto e o vento zunindo: vagabundos se estendem nos bancos, enquanto sêo guarda não vem: Homens e mulheres solitários olham para longe, para o vago, pobres, inexpressíveis, perdidos, desesperançados, há! os tristíssimos plátanos da Praça da República!

A Paineira também não restou uma folha, porém ela não é triste.

Ainda vai perder mais, antes que o milagre da primavera a ressuscite.

Viu irem-se as folhas aos sacolejos da ventania. Elas dançam a sua dança, durante o inverno, logo depois que o tapete de pétalas forrou o chão alcantificado de grama. Voaram e dançaram no ar, durante todo o inverno, enquanto amadureciam os oblongos frutos verde-cinza. Um dia a árvore amanheceu nuazinha. Nuinha, apenas um garrancho escuro contra o céu azul. Penduravam-se nas pontas dos galhos os estojos cor-de-esmeralda, balãozinhos cativos. E é agosto. A árvore nem sequer se retorce, ao toque violento dos ventos. Podem as pétalas cor-de-ferrugem das mangueiras giro-girar e desenhar no chão arabescos imprevistos. Ela está ali hierática e imóvel, tendo na ponta de cada ramo, como nas palmas de muitas mãos abertas, uma dádiva. Os frutos amadurecem ao sol. O mormaço quente abre-lhe as fendas, partiu-se em dois, fez-lhe estalar a casca, caiu em duas metades encarquilhadas. Ficaram no galho alvos punhados de paina de seda de açúcar, de penugem, de pluma, de luar.

Mil flocos de paina de seda, numa árvore que parece morta. E o vento vem e desfolha, os mil flocos um a um, como se despetalasse flores.

Cada semente viaja nas asas do vento, acolchoada no seu leito de paina, viaja para longe, viaja, vai nascer em qualquer lugar distante, para um novo milagre e para novas viagens.

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