domingo, 28 de abril de 2013

Entardeceres

Ruth Guimarães 

Fui escolhida certamente pelo destino para escrever sobre velhice de tal maneira se colocaram as condições para que eu soubesse mais do que cabalmente, intimamente, do que estou falando. 

Fiquei órfã de pai e de mãe muito cedo, e fui acolhida por meus avós maternos, já bem idosos, pois minha mãe era a caçula de onze filhos. Minha avó era uma curiboca, mestiça de preto, índio e português, e desde pequena eu a encontrei em pleno processo de envelhecimento, com uma orla azulada em torno dos olhos escuros, cabelos grisalhos, usava prótese dentaria, e sua cor era de um pardo acizentado. Ela própria não sabia que idade tinha, cozinhava, lavava a toda a roupa da casa. Eram muitas pessoas, incluindo cinco netos que lhe caíram em casa com a morte da filha, o mais novo com dois anos. Médico não entrava em nossa casa. A avó conseguia resolver todos os casos de acidentes da criançada, como pisar no prego e no caco de vidro, arrancar a unha do dedão quando se tropeçava, cair do cavalo que se montava em pêlo, mordida de cachorro, sarna de carrapato, juçá por motivo de virar cambalhota nos montes de palha de arroz e outras desventuras nossas. 

Quanto a ela, nunca a vi doente, de cama, embora tivesse reumatismo deformante nas duas mãos e nos braços, uma história antiga de doença cardíaca, e já estivesse muito desgastada, a pobre, de viver e sofrer. Mas ninguém podia dizer que tinha visto um só dia nhá Honória doente. Fazia longas caminhadas aos lugares de peregrinação, comia bem, dormia bem. Se o reumatismo a martirizava, nunca lhe ouvi um ai. Gostava de roupas de colorido vivo, estampadas com flores e era costume seu mexer as panelas cantando umas cantiguinhas da roça, daqueles velhos tempos. 

O pintor que pintou Ana 
pintou Maria também. 
Se Ana saiu mais pintada 
o pintor que culpa tem? 

Contava longas histórias, em noites de frio, sentada num banco em redor do testo com brasas, os netos em volta. Tinha rígidos princípios e a mão leve no cocorote no alto da cabeça. E ágil na varanda, quando necessário. A casa era limpa, clara, aberta, ninguém pedisse um prato de comida que não levasse. Éramos pobres, limpos, alegres. Sem queixumes. 

Meu avô era português. Imigrou para o Brasil aos 14 anos, sozinho, recomendado ao capitão do navio que o trouxe. Aos 19 anos voltou à santa terrinha para se casar com a conversada que deixara lá. Trouxe-a consigo, ela morreu de febre amarela no Rio de Janeiro. Voltou para Minas, na Zona da Mata e ali encontrou aquela que foi a companheira até que a morte os separasse: minha avó Honória. Meio judeu pelo lado da mãe, era alto, magro, forte, rubicundo, trabalhou em serviços duríssimos, foi lenhador, taverneiro no Rio de Janeiro, depois guarda-chaves da Central do Brasil e seria ferroviário o resto da vida. 

Não sei se consegui dar a ideia de que cresci entre velhos que não eram velhos no sentido pejorativo da palavra, mas gente que caminhava valentemente para o arremate dos males, sem os achaques, sem desfalecimentos e trabalhando sempre para cumprir até o fim sua tarefa. 

Vou continuar a prosinha na semana que vem...

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