Ruth Guimarães
Todos os dias, quando passo, vejo a velhinha, tecendo balaio. Balaios e peneiras de pescar. Anda por volta dos cem anos. Está caduca e é surda como uma porta. A cabeça se esgotou do muito pensamentear. Os dedos, esses jamais se cansam e jamais desaprendem o seu ofício. Dedos de velha, cheios de nós, tecendo balaios. São impressionantes, assim sem pensamentos que os ilumine.
Minha avó dizia que quem morre não faz falta, porque quem fica se arranja. Quem não morre também não faz falta. Fico arrepiada de ver os dedos cheios de nós de siá Ana de Jesus, tecendo balaios, tecendo balaios. Por que está siá Ana tecendo balaios? Para a economia do universo de que valem siá Ana e seus balaios? Por que ela ainda está tecendo balaios, se falta só um minuto para morrer?
Diz-se que certa mulher muito rica, um dia, atacada de estranha insânia, lembrou-se de se recusar a morrer.
- Senhor! – implorava de mãos postas, diante do altar do Santíssimo. – Que eu não morra, Senhor.
E assim começou a extraordinária história. Pois sim – deve ter monologado o UM Eterno e Único. – Assim seja, uma vez que o desejas.
Naquela noite, durante o sono da velha senhora, desceu do céu, de asas espalmadas, um anjo do Senhor.
- Não morrerás! – disse ele – enquanto durar a igreja de pedra que mandarás fazer em nome do Senhor. Está dito. Esta é a Ordem.
No outro dia, a castelã ordenou a construção de uma igreja de pedra.
“Essa que tem tanto dinheiro, que quer? Por que a igreja de pedra? já está com os pés na cova. Dê o dinheiro aos asilos e aos orfanatos. Dê de comer a quem tem fome e agasalho a quem tem frio. então, igreja de pedra?” E abanavam a cabeça, desolados.
A azáfama era grande. A mulher tinha pressa. Essa igreja é a minha vida. Ao ver a última pedra colocada no cimo da última torre, ela sorriu. Há muito não sorria. Asas esvoaçavam no ar tranqüilo.
Os anos se passaram, inúmeros, lentos ou céleres, ora rolando, ora se arrastando, ora em desfilada. Ela vivia e foi vivendo. Morreram-lhe os filhos, os netos, os bisnetos, os netos dos bisnetos, todos os que a amaram, todos que a conheceram. Ela ficou para trás. Nem um olhar dos que chegavam, nem um adeus dos que se despediam.
Ninguém falava mais com ela, no temor daquela longevidade espantosa. O vácuo se fez em torno dela. Nem um olhar dos que chegavam, nem um adeus dos que se despediam.
Foto de Botelho Netto |
Era o deserto, o infinito, o desespero, a solidão. Ela não se assemelhava a mais ninguém. Ela no mundo, sozinha, única, espantosa, medonha. (Deus se sentirá sozinho?) Ela então se pôs a rezar, pedindo a Deus que a igreja caísse.
Siá Ana de Jesus, tecendo balaio...
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