Foi no final de junho que através de uma reportagem do Jornal da USP, conheci a escritora Ruth Guimarães (1920-2014).
Para anunciar novas edições de livros consagrados e o lançamento de livros inéditos seus, a reportagem trazia informações sobre sua vida e suas principais características como escritora, intérprete do folclore e da cultura da gente simples do sul de Minas Gerais e do interior de São Paulo. Mulher negra, precursora de um estilo literário tão premiado que revela o imaginário e a sociabilidade fantástica do povo latino-americano, Ruth Guimarães tem para muitos, como eu até outro dia, uma obra desconhecida que precisa ser difundida e fazer parte do acervo das nossas escolas e bibliotecas públicas. Sua literatura revela com maestria e autenticidade a cultura de um povo que tem na oralidade um instrumento potente de transmissão de saberes, de construção e fortalecimento das identidades individuais e coletivas.
"Água Funda" é um convite ao reconhecimento dos modos de vida da nossa ancestralidade que ainda se manifestam fortemente em nós. Colabora na busca da nossa identidade como povo que habita o "entre-lugar" entre as "Minas" e os "Gerais", que nasce da combinação do modo de vida caipira e sertanejo.
Publicado em 1946 como a estreia da autora, traz uma linguagem que demonstra a sua perspicácia em valorizar a fala caipira, sem com isso abrir mão de um estilo narrativo adequado à norma culta. A prosa é envolvente como as boas conversas com os idosos sábios ao pé do fogão à lenha, despertando a mesma atenção das estórias contadas nas noites em que vai embora a energia elétrica e, para passar o tempo no breu em que não se enxerga um palmo à fente, a família se reúne para contar e ouvir "causos", muitos desses originados na rica imaginação popular.
A vida na roça narrada em Água Funda percorre a transição do modelo escravagista para o trabalho assalariado, do escravo para o peão, dos senhores de engenho para o empresário rural, transição inacabada que abafa o prelúdio de uma libertação. Expõe o medo como o fio condutor das trajetórias. Medo de bicho, medo de praga, medo de gente, medo de assombração. O medo em um imaginário que se fortalece com o folclore e que se "combate" com a religiosidade popular. Ou será que se retroalimenta?
Não falta, porém, nas páginas de Água Funda casos de amor, como de Curiango, a bela moça, e Joca, o caipira atormentado pela Mãe de Ouro; as aventuras vividas pelo Bugre, homem simples que parecia imune às picadas de cobra; as amizades, como a de Joca com Vicente Rosa e Antônio Olímpio, a cooperação, a empatia, o senso de justiça e comunidade.
Também se destaca na escrita de Ruth Guimarães, como na do seu colega de estreia em 1946 e intérprete do sertão, Guimarães Rosa, com Sagarana, reflexões sobre o sentido da vida, metáforas reveladoras do que pode vir a ser nossa existência. Termino, pois, com uma dessas:
"A gente passa nessa vida como canoa em água funda. Passa. A água bole um pouco. E depois não fica mais nada." (p. 53).
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