quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

Contos Negros, belo e necessário

Oswaldo de Camargo*



Esta é a primeira edição de Contos negros, obra de Ruth Guimarães terminada na década de 1980, e que se mantinha inédita por motivos pessoais da escritora. Merece entusiasmada comemoração.

Neste ano em que Ruth faria 100 anos, Contos negros, em nosso país, tem especial significado, que a autora, em 128 páginas, aponta com simplicidade e exemplar erudição.

O livro tem o jeitão negro-caipira de Ruth Guimarães, afeita a recolher e contar “causos”, primos descalços dos contos eruditos, mas, se se observa bem, acrescenta a isso a sua condição pouco falada de poeta, o que amplia o encanto do conteúdo dessas histórias que têm como marca simplicidade e a mais solta imaginação.

Nascida em Cachoeira Paulista, em 1920, ano em que o Brasil inteiro já estava se preparando para os festejos do centenário de sua independência, a circunstância de a data obrigar a reflexões sobre a identidade do País, sobretudo a urgência de, afinal, se “abrasileirar”, aceitando-se como branco, índio, negro, vai determinar o rumo da futura romancista, pesquisadora de cultura popular, folclorista, contista que privilegiaria em seus enredos a presença de gente miúda.

Contos negros, ora publicado pela Faro Editorial, tendo como editor Joaquim Maria Botelho, filho da escritora, é produto do esforço para mostrar o Brasil em sua face de simplicidade e mestiçagem cultural negra, iniciado por Ruth com seu primeiro romance, Água funda, de 1946. Tem-se que, diante desse livro, prestar tributo a Mário de Andrade, “bardo mestiço”, como ele se afirmou em um de seus mais conhecidos poemas, que é “Meditação sobre o Tietê”. Conforme relata José Luiz Pasin em seu folheto Ruth Guimarães – Bio bibliografia, foi Mário de Andrade que “a iniciou nos estudos de folclore e literatura popular”. É questão de justiça assinalar a importância de Mário na trajetória de Ruth. Mário de Andrade, “bardo mestiço”, soprando rumos à afro-caipira Ruth Guimarães.

Vale no caso de Ruth, pelo seu caminho de escritora luminosamente percorrido, esta reflexão do pensador e teólogo católico Romano Guardini: “O que um homem é pelo seu nascimento determina o tema de sua vida: tudo o mais só depois se acrescenta. O meio envolvente e os acontecimentos exteriores decerto exercem uma influência, transportam e pesam, comandam e destroem, agem e formam, mas o elemento decisivo permanece este primeiro passo para o ser – aquilo que se é pelo nascimento (...)”, passagem encontrável no livro O Senhor, traduzido do alemão pelo filósofo brasileiro Fernando Gil.

É da terra caipira que vem Ruth Guimarães. É uma afro-caipira.

No texto “Dois dedos de prosa”, que antecede os contos, Ruth fala da intenção deste livro: “Disseram-me que eu devia explicar, rapidamente, num bate-papo ameno, o critério de seleção destes contos. Em primeiro lugar, não houve preocupação sentimental, nem pedagógica. Aliás, o primeiro contato, completamente irracional, com a matéria, foi ajustar o material, recolhendo-o despreocupada na fonte, isto é, entre o ‘povo‘”. (p. 7).

Então, lembrando Guardini: “O que se é pelo nascimento...”

Ruth Guimarães é limpidamente povo, a despeito de toda a erudição que adquiriu com sua formação universitária e as circunstâncias do meio culto em que viveu.

São sintomáticas suas várias traduções de romances e contos, notando-se preferência por Dostoievski, um romancista que se voltou sobretudo para personagens que carregavam atavicamente a miserabilidade do povo russo, sob a opressão dos poderosos daquele tempo. Traduzindo, pode-se supor que nesse mister ela via a semelhança com o mundo de gente miúda, aqui existente, foco principal de sua produção de escritora.

Em 1980, década em que reuniu o material para o que é hoje este livro, Ruth Guimarães tinha 60 anos, sendo dona de uma bagagem admirável na área da etnografia e do folclore.

Dessa bagagem sai Contos negros, que pode ser visto como um minicurso sobre mestiçagem cultural; sobre o que é o Brasil, que, com sua mistura racial (hoje 54% negro, somando-se gente preta ou mesclada), comporta, sem muitas vezes perceber, um país mestiço também de alma, o que aponta o absurdo da presença, ainda, do racismo em nosso meio.

Um minicurso com a prosa gostosa de Ruth, que espalha sobre o negro observações que só poderiam provir dela: “O Vale é todo tisnado das características rústicas da raça: rostos grandes, pele trigueira, curtida, grossa, lisa; lábios carnudos e sorrisos largos, de orelha a orelha; olhos grandes, parados , lustrosos, parecendo líquidos; narizes volumosos; cabelos escuros, ásperos, que se vão desenovelando na mestiçagem com o branco (...).

Repetindo: livro com o jeitão de Ruth. Delicia-se com ele, aprende-se com ele muito sobre coisas jamais pensadas na relação do negro com o mundo e suas histórias por aí desde muito tempo espalhadas.

Uma curta aula, sem pretensões de se mostrar mestra, mas da qual escapa, para felicidade do leitor, muito do que Ruth leu, pesquisou, observou a respeito da “mestiçagem” encontrável em uma série de contos que correm de boca em boca sobretudo em casas modestas do interior, sem se supor que se está antenado com os irmãos Grimmm, Perrault, As mil e uma noites, o Corão.

Nele, Ruth adverte ao leitor distraído que não se deixe enganar: ogros, gigantes e o conhecido episódio do gênio da lâmpada, a própria mitologia grega, possivelmente via islâmica, fazem incursões no populário afro. Quem já apontou isso na cultura negra no Brasil?

Ler Contos negros é entrar em um imaginário que, sem este minicurso de Ruth, que vai da página 7 à 17, espraiando-se com notas após várias histórias, seria quase impossível descobri-lo como de face mestiça.

Assim, em “A mãe de ouro” (p. 19-21), com seu final cruento, no qual “um barulho estrondou na floresta, desabaram as paredes do buraco, o patrão e os escravos foram soterrados e morreram”. Assim em “O gigante” (p. 23-28), cuja compreensão é ampliada com uma bem erudita nota, enriquecedora para a apreciação do conto. Assim em Pacuera-cuera! (p. 31-35), em que se ostenta belamente a linguagem popular colorida por Ruth. Exemplo, pego a esmo: “A noite caminhou com pés de lã e silêncio, até bem tarde. Vizinhava a meia-noite e, então, um urro pavoroso se ouviu do fundo do mato. Os dois irmãos acordaram aterrorizados.” (p. 53).

Acrescente-se, merecedora de especial atenção, a seção ”Cosmogonia Afro- Brasileira – Contos de explicar o mundo e a vida”, que segue da página 51 à 63, em que se torna impossível apontar qual o conto de menor interesse: “O Senhor do mundo” (p. 51-55), “A sombra do outro” (p. 57-59), “O lagarto intrometido” (p. 61-63).

Contos negros ilumina, com luz forte, a riqueza que é a mestiçagem cultural viva no ambiente de muita gente miúda – branca, índia, negra –, a cara mais autêntica e desprezada de nosso país.

(In: Quatro cinco um – A revista dos livros, n. 39, nov. 2020)

Referência

GUIMARÃES, Ruth. Contos negros. São Paulo: Faro Editorial, 2020.

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* Oswaldo de Camargo é jornalista e escritor. Dentre suas publicações destacam-se: O negro escrito (crítica, 1987); A descoberta do frio (novela, 2011); Oboé, (novela, 2014); O carro do êxito (contos, 2016); Luz & breu: antologia poética 1958-2017 (2018); e Negro disfarce (novela, 2020).

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