sexta-feira, 20 de outubro de 2017

Terreiro das Artes

Terreiro das artes foi o nome que dona Ruth e “seo” Zizinho deram ao seu quintal. O nome pode ter sido ideia de Zizinho, que também era poeta. Eles reuniam os amigos linguistas (novidade nos idos de 1970), os cantadores e contadores, os repentistas, os artistas plásticos e conversavam na frente de uma fogueira, se fazia frio, ou à sombra das mangueiras do quintal, se fazia calor. 


O casal fundou o museu de folclore Waldomiro Silveira e construiu uma capelinha para fazer a festa de folia de Reis todos os anos. As escolas traziam grupos de alunos para conhecer seu material e os guias eram os filhos do casal que monitoravam e depois ofereciam um chá ou um suco depois da visita, servido em um grande bule. 

Ambos eram professores, educadores, pesquisadores, artistas e caçadores de talentos. Não aconselhavam, mandavam: “vá fazer um curso” “venha aqui e eu te ensino” “vá embora pra São Paulo”. E muitos acataram suas ordens – e alguns viraram artistas. Dos frequentadores teve: Severino Antonio Moreira Barbosa, Roberto Mendes, Paulo Pauléca, Régis de Morais, Chico Máximo, José Luiz Pasin, Tom e Teresa Maia, Jorge Chalita, Ismar de Castro, Nélida Piñon, os Novos Baianos, Inezita Barroso, o grupo de seresta os “Velhinhos Transviados”. E os filhos sempre por perto, sendo o suporte, a equipe, os secretários, os motoristas, a produção.

Cada um tinha o seu séquito: Zizinho ou Botelho, fotógrafo, era mais extrovertido, muito elétrico, andava rápido, falava bastante, gesticulava bastante, professoral, mostrava, apontava. Ruth era observadora, atenta, andava devagar, falava devagar, escrevia devagar, era preciso às vezes adivinhar o que escondia aquele sorriso. E os alunos de cada um vinham à procura de coisas diferentes que nem sabiam complementares, feitos um pouco de José e um pouco de Ruth: ele fazia as fotos, levava-os ao laboratório, rasgava um pedaço de papel para fotografia, revelava, manchando ainda mais as unhas pretas de química, dava lições de vida, cortava o papel bem direitinho mesmo molhado e o entregava para o aluno/amigo. Ela sentava à mesa, contava histórias, ria das próprias piadas, as mesmas sempre, depois ia mostrar o quintal, as flores, as plantas curandeiras, as frutas, o aluno saía com uma sacola cheia de livros e frutas e plantas e flores. E depois todos traziam outros, para ouvir as mesmas histórias e ganhar um retrato. Não, não era pouco.

Ruth gostava de fogueira. Nasceu em um 13 de junho, mês de festas. Mês de paçoca de pilão – e todo aluno que chegava pilava amendoim. Fez no seu quintal um espaço especial para a fogueira e um fogãozinho a lenha, onde punha uma lata cheia de pinhão, que ficava esquentando a noite inteira. Um ranchinho para a comilança. Uns bancos de madeira. E todo ano tinha fogueira, fizesse frio ou não. Joaquim Maria, seu filho mais velho, herdou esse amor ao fogo, junta lenha também. Zizinho recebia, conversava, fotografava. Ele tocava cavaquinho e violão. Ela cantava. Cantavam: “meu chapéu de paia, que veio do Ceará, meu chapéu de paia, que é pro sol não me queimar” e “Mané fogueteiro era o deus das crianças, na vila distante de Três Corações, em dia de festa soltava foguetes, fazia rodinha soltava balões” e “ com a corda mi, do meu cavaquinho, fiz uma aliança pra ela, prova de carinho”. Eles cantavam e tocavam, e escreviam, e liam, e declamavam, e riam e riam.

E todos vinham para as festas. Eles não anunciavam nos jornais, não tinham redes sociais, não punham nas rádios, mas todo mundo sabia, e todos vinham e a casa estava sempre cheia de gente, de artistas, de povo. O pipoqueiro, pobrezinho de tudo, lhe dava de presente na sua festa de aniversário o seu carrinho e o seu fazer. Ficava a postos a noite toda, oferecendo pipoca para toda a gente. 

Zizinho morreu em outubro de 2001. Parceiro de uma vida inteira. Ruth não teve outro jeito, ainda não era sua vez, precisou suportar a perda e seguir em frente. Foi secretária da cultura de Cruzeiro por dois mandatos e em Cachoeira Paulista por um mandato. Seguiu fazendo palestras, encontro de folias de reis, de congadas, trabalhando no parque ecológico, dando entrevistas. Contando histórias. Publicou livros, fez lançamentos, entrou na Academia Paulista de Letras, quis reunir mil histórias brasileiras e chamou os colegas da Academia, os colegas professores, escutou os que vinham na sua porta chamar seu nome para ajudá-la. Não teve tempo, porque fazia tudo devagar e precisava ir gestando, como estava gestando o seu livro da bruxa, outro chamado um tal de Zé, sua enciclopédia de medicina folclórica, os outros volumes das histórias infantis que começaram com Histórias da Onça e Histórias do Jabuti, e nem sabemos quantos mais tinha borbulhando na cabeça! Deixou um monte de papéis, em um armário cheio de portas, e este armário é uma daquelas maquinações que Deus fez para o Pedro Malazartes não incomodar mais ninguém, nem o Diabo! Aquela maquinação do Malazartes separar o joio do trigo e vir um vento sei lá de onde e misturar tudo outra vez. 

Deixou também quatro herdeiros que são os guardiões da memória deste casal: Joaquim Maria, o número 4, tem o acervo de seus livros, corre atrás de editoras para a publicação de seus livros, Olavo, o número 8, digitalizou as mais de cinco mil fotos de Botelho Netto, alimenta o blog “Retratos&Crônicas" (http://retratosecronicas.blogspot.com.br/), alimenta o face de Botelho Netto em preto e branco (https://www.facebook.com/botelhonetto/?hc_ref=SEARCH) e administra a página pessoal de Ruth: https://www.facebook.com/ruth.guimaraes.902; ele e Marcos (no 6) administram o espaço Ruth Guimarães (https://www.facebook.com/groups/108863609318855/). Marcos e Júnia (no 9) ficaram em Cachoeira Paulista e fazem a manutenção da casa onde nasceram José e Ruth. O terreno todo tem aproximadamente três mil metros quadrados, com várias casas construídas, vai do viaduto ao parque ecológico, pela Rua Carlos Pinto, e da linha do trem ao parque ecológico, pela Rua Silva Caldas. 

O “Terreiro das Artes” continua funcionando. Lá acontece o grupo de estudos “Ruth Guimarães”, uma vez por mês, qualquer pessoa pode participar; há visitas de escolas particulares e municipais do ensino fundamental querendo mostrar a seus alunos quem foi Ruth Guimarães, estudantes da faculdade Canção Nova procuram enriquecer seus trabalhos de conclusão de curso com gravações a respeito de Ruth Guimarães. 

Os filhos continuam festejando o aniversário de Ruth, dia 13 de junho. Como também é uma festa importante na cidade, às vezes é remanejada. E fazendo saraus no “Terreiro das Artes”, das 5 da tarde até às 5 da manhã, com a apresentação de vários artistas da cidade e arredores, declamação de poesias, exposição de fotos e pinturas. Continuam seguindo a cultura de Ruth e Zizinho. Porque é preciso continuar a história desse casal, dois talentos que não podem morrer, e também é preciso continuar a fazer cultura, independentemente de órgãos governamentais e de crises mundiais. 


Júnia Botelho, a filha número 9.

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