sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Democracia

Ruth Guimarães

Há uns tempos, noticiaram os jornais o advento de novas experiências para ludibriar a Morte, a Indesejada das Gentes. Trata-se do congelamento de doentes incuráveis. E eles terão a vida em suspenso por um longo período. Serão descongelados, quando a Ciência tiver conseguido a cura para os seus males.

A Primeira Grande Guerra trouxe a descoberta das sulfonas e a cura de doenças não somente mortais, mas horripilantes, como a lepra. Com a Segunda Grande Guerra apareceu a penicilina. Dali para diante era para ninguém mais morrer de pneumonia e nem sofrer de moléstias infecto contagiantes, especialmente as venéreas. Com mais uma guerra mundial por aí é possível que consigam os cientistas a cura da Aids, quem sabe até da calvície e da erisipela.

Por enquanto a única instituição verdadeiramente democrática que temos é a Morte. “A morte não escolhe” – dizia minha avó, sempre que o sino grande da matriz, blen-den-den, dão-dão-dão, bronzinava por algum ricaço da paróquia. “Chegou o dia, não tem esse nem aquele, tem que ir.”

Era lindo aquele modo de pôr as coisas. Era categórico. Era justo. Era duro. Morreu João Vermelho. Ah! não tem esse nem aquele. Morreu compadre João Emboava. Não tem esse nem aquele. Morreu o governador de São Paulo... não tem esse. Morreu o Papa.

... nem aquele.

Fora essa atuação soberba da Ceifadora, é muito discutível a alegação de sermos iguais. Em primeiro lugar todos nascemos diversificados. Todos nascemos aqui e ali, sem escolha. Alguns nascem aqui, outros ali. Um é a rainha da Inglaterra, outra a Maria Caxuxa do bairro, feia, banguela, pintada, babando e xingando.

Pois sim, as oportunidades iguais! Quando a chuva inunda Caraguatatuba, o sol estorrica o Cariri. Uns têm QI 75, alguns atingem o QI 180.

No entanto, para consolo definitivo do nosso senso de justiça, a Morte era igual para todos: oportunidade, meios, tempo, tudo igual. O dia de morrer era o dia de morrer. Minha avó podia pôr a sua confiança num deus que não transigia com a riqueza, nem com a posição social, nem com a beleza, nem com a ciência, nem com a santidade. Não tem esse nem aquele.

Vão me dizer que assim como a Morte é para todos, a criobiologia, isto é, a arte de congelar para esperar futuras curas milagrosas, a criobiologia também será. Todos podem adiar o seu dia (o mesmo se diz da lei. E para quem vai o rigor das penas?)

Criobiologia para todos? Não me façam rir! O serviço público para a saúde está com os aparelhos quebrados, a verba estourada, não se fazem internação, não há remédios. E para os convênios particulares hay que tener mucha plata.

Eu sabia que com tanta descoberta iam acabar desmoralizando a própria Morte, que, nos tempos antigos, praticava verdadeiramente a Democracia. 

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