terça-feira, 27 de agosto de 2013

ÁGUAS FUNDAS

Joaquim Maria, junho de 1996

E aí vem Ruth, no seu passo descansado, com seu cavalinho comendo capim. Traz o picuá carregadinho de histórias, cheio, cheiinho de amor, melodias de Hamelin. E vem tocando um realejo. Quem quer comprar? Num precisa dinheiro, gente! De Ruth as histórias, os ensinamentos, como dirão os latino-americanos, “no se compran, ni se venden,m sino se rinden em caridad”.

É assim. Professora daquela de ensinar em cada conversa sossegada, conta histórias, parábolas cristianas cristalinas. Crisóstoma, Ruth enriquece o rei com o ouro da sabedoria e faz a vida imitar a arte, que quem sonha o belo transforma o mundo. Lá vai andando, calçando um chinelo diferente do outro em cada pé, porque não achou o par certo na hora de calçar e, ora bolas!, que importância tem isto? Importante é que ela ama Cachoeira Paulista, como ama as flores das mangueiras, o reflexo da igreja de Santo Antonio nas águas do Paraíba, e como ama esses chinelos doidos!

Estava bela na homenagem em Lorena, no Santa Teresa, toda de preto, colar azul, alma em sorriso. E quem a viu, a viu inteira, e enxergou atrás dela o cavalinho de Santa Luzia, o jumentinho de São José, o asno de ouro de Apuleio, São Cristóvão de ombros largos junto com os líderes religiosos, os dois papudos, Sapatinho Vermelhinho, o moleque Zé Ignácio, nhá Carolina, Curiango, Marie Curie, “Seu” João Cassiano vendedor de frangos, o macaco Serafim, o carroceiro João Muamba, Dito Cego, Chipa-Gata, Antonho Lopes, Nossa Senhora, Jesus, o Tinhoso desconfiado de tanta buniteza junta, a tribo dos japuris, quilombolas, Lesseps, Buda, Valdomiro Silveira aprovando com a cabeça em gesto discreto, o cirílico Dostoievski, as mães de todas da lenda e da história. Foi uma procissão que nunca se viu. Ou que vê todo santo dia quem sabe das artes e manhas e dessa caipira contadeira de histórias.

Ela convidada foi, convidada veio. Sentou-se à mão direita de Pasin. E ouviu. Era tempo dela estar ali, entre amigos, e ouvir. 

Deu-se o ritual da palavra. Ruth embalou-se ao compasso sossegado do tio Motinha. Relembrou o seu tanto comum das memórias do Henrique L. Alves. Ficou com a alma aquecida pela flama oratória do Gabi Chalita. Deleitou-se com a precisão cirúrgica de pesquisador do Pasin. Recebeu honrada a análise generosa da doutora Olga, irmã. E abraçou, humilde, contente a placa de homenagem das mãos do Pesciotta, o Nelson, sociólogo.

Na plateia, as pessoas aprovavam os discursos, com sorrisos, acenos, arrrulhos. O Botelho, marido, primo, tinha os olhos molhados, ao lado da Irmã Heleninha. Os filhos, esses estavam com o peito inchado. Tia Norinha, a irmã, não se continha de orgulho com o carinho derramado naquela sala. Zé Lobão, amigo de todas as horas, retorcia os bigodes, branquinhos já, sorridente.

Ruth se ergueu, e falou. E toda a gente jurou que Ruth é uma fada. E é mesmo. É uma bruxa boa, repito, que marca os quintais por onde passa com a luz da caridade e com a luz do amor. Amor depurado em muitos sofrimentos, que ela enfrentou como Joana d’Arc, valente. Nos momentos de desespero ficou num canto, lambendo as feridas como um bicho. Mas sublimou desditas com trabalho, superou perdas com novas conquistas. E deixa a todos que a conhecem babando de inveja, de conseguir dar o que tem, São Francisco da Cachoeira, e ainda ficar com tanto. De onde ela tira essa valentia, esse valor, sabei-me lá!

Conversa de filho, esta aqui. Mas é tempo de loas.

E que eu entenda, sempre será tempo de loas a essa mulher que mudou o mundo da tanta gente. Alunos encontro, que foram seus no começo dos anos 50, ou há vinte anos, ou há cinco, ontem, a jurar ternura e gratidão. Homens feitos, vão visitá-la antigos guardinhas que ela formou e ajudou a educar na Guarda-Mirim de Cachoeira Paulista, que fundou e mantém, trabalhando como uma moura. Escritores leio, a esmerar-se em cartas para ela. Pessoas ouço, ansiando voltar a ter com ela a gostosura de uma conversa ao pé das mangueiras e unhas-de-vaca, regada a chá com bolinho, no avarandado da casa velha de Cachoeira.

As coisas são simples assim. Ruth fala o que vê, pelo filtro do seu talento formidável. Ela ajunta o que vê, registra, processa e reconta, simplesinho, honesto, limpo, certo, gostoso. Dá no que dá. Esses escritos de calma correnteza em águas profundas que levam a gente, devagar, balangando, nananinando. Como sempre se dá, nem todo o mundo apreende o misterioso sentido das coisas que ela conta. Chicotinho queimado, Ruth! Comigo não morreu! Você não vai ser, pra mim, canoa em água funda, que mexe um pouco na superfície da água e, depois que passa, não deixa marca do seu passar. Você fica, escritora, na memória do mundo. Mas fica porque, como dizia Ernâni Silva Bruno, você não é escritora, é gente! Da melhor qualidade.


Ave, escritora, irmã minha, minha mãe, que escreve como uma fada escreveria. Ave, akpalô-kipatita do folclore valeparaibano. Ave, mulher forte das nossas vidas. Ave, minha mãe!

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