Ruth Guimarães
Tinha Amadeu de Queirós completado meio século, quando Plínio Salgado o descobriu, encaminhando-o com todas as honras e todas as deferências, logo de início para o editor Monteiro Lobato.
Velho Amadeu caiu muito depressa do seu sonho. Nem bem saiu A Voz da Terra, a lírica, a linda, a emocionante, a suave A Voz da Terra, a editora faliu. Todos os livros foram por assim dizer, despejados nas calçadas. Cada livro era vendido a dez tostões. Antes dele, Amadeu de Queirós escrevera Sabina e Os Casos do Carimbamba. Depois dele: João, livro que tem uma perfeição lingüística e temática de cristal e água pura. Quarteirão do Meio, pela Editora Globo, A Rajada saiu pela Saraiva na coleção “Livro do Mês”, e o livro de memórias – Dos 7 aos 77 também foi publicado pela Saraiva.
Dizem que os livros e contos de Amadeu de queirós são amargos, mas discordo. Têm a sua realidade, pó força, plasmados que foram em vivência e experiência nem sempre agradáveis. Mas contêm uma bela mensagem de esperança, de otimismo, de fé no homem em si e nas conquistas do espírito. Corações compassivos não faltam na obra de Amadeu, que é um bom.
O governo da Minas, em 1954 houve pó bem fazer justiça á Literatura e se portou de modo lírico e sábio. Recomendou A Voz da Terra, como livro de leitura nas escolas. Grande vitória para o autodidata, que teve na escolinha do avô Policarpo, em Pouso Alegre, a primeira e única escola de sua vida. Não conheceu outra nem outro professor.
No entanto, a Roda da Baruel era uma verdadeira escola de literatura. Velho Amadeu exigia dos moços, em primeiro lugar, a vivência. Sem o conhecimento vivido, nada feito como obra de arte.
-Mas viver todas as coisas? Isto é existencialismo, - dizíamos, na ânsia das generalizações fáceis e falsamente eruditas.
E velho Amadeu, antecipando Somerset Maugham, com uma deliciosa cor mineira:
-Pra saber o gosto da leitoa você não precisa comer uma inteira. Uma costelinha chega.
Em segundo lugar, na questão da ordem, e não da importância, vinha a tremenda, a acirrada questão do ponto de vista, da posição do escritor, da debatida questão da linguagem.
-Se você estiver falando, você, como escritor, a língua tem que ser correta. Na fala, no diálogo, você põe as deturpações que ocorrem naturalmente.
Eu dizia isto ao mesmo tempo em que Mário de Andrade, numa ousadia espaventada, confirmando e afirmando Macunaíma, em plena linguagem escrita de crítica e outros assuntos igualmente graves, escrevia “milhor”, escrevia “pensamentear”, e outras enormidades que arranhavam a grossa epiderme do burguês.
Amadeu de Queirós era, sem favor, a melhor língua de São Paulo, e colocava-se resolutamente do lado da linguagem castiça. Rezava pela cartilha de Eça, tinha a religião da perfeição da forma e a ela sacrificava um pouco a poesia e a emoção. Verdade é que de sua pena saíam primores mármores, mas também me escrevia, com deliciosa simplicidade:
“... e sempre que se sentir contente com a vida, e tiver vontade de se expandir, como gostam de fazer todos os contentes, escreva-me contando o que lhe aconteceu, porque me alegra participar do seu contentamento.”
Amadeu de Queirós representa na moderna literatura alguma coisa que já perdemos: a claridade, o plano, o perfeito, o solar. Como ele, temos Gilberto Amado, um grego dos nossos dias. Na opinião de Amadeu, Mário de Andrade se havia perdido por excesso de pragmatismo, coisa tão fora das cogitações de Amadeu como o inverso, o sentimento puro. Nele está o equilíbrio clássico, e tão faltos de equilíbrio andamos, nós os pobres escritores lunares de agora!
Outro de seus cavalos de batalha era o método. Sentar e escrever, dizia ele. Duas horas por dia. Eu que sou velho, escrevo duas horas por dia, todos os dias. Escrevia sim, com aquela letrinha caprichada, inclinada para a direita, legível, letra que não parecia nem com os garranchos de um escritor, nem com os rabiscos de um farmacêutico. Não jogar nada fora, dizia também. Guarde. Servirá para você traçar a história do seu espírito.
Creio, no entanto, que muito poucos de nós estariam preocupados com o espírito. Éramos juventude turbulenta, tentando voo que importava o espírito? O grupo do Roteiro estava todo ali, na drogaria, vindo fragmentado, um pouco na hora do almoço, um pouco á noite.
Muitos se filiavam ao materialismo histórico. E andávamos todos ansiosos por um rumo qualquer, que não precisamente o caminho do espírito A esses entusiasmos, Velho Amadeu opunha o seu frio racionalismo:
-Não sou patriota, nem democrata, nem adiantado, não acredito em propaganda, não confio em técnicos não entendo de esportes, nem de Sociologia.
Era uma boa frase e ele adorava frases. Faria inimigos para não perder a deixa de dizer uma. Tinha a pachorra de as anotar, quando ele próprio fazia uma que o agradava, e, um dia, me mostrou o caderno cheio delas.
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