quarta-feira, 24 de abril de 2013

Francisco, Negro de Angola

Ruth Guimarães

Quando veio, já tinha sido rei. Pode-se bem imaginar o que seria a sua aldeia, cubatas alinhadas, guerreiros com armas pontiagudas; a cubata real, com redes trançadas de fibra das palmeiras, penduradas em grossos troncos, o teto de folhas. Mas houve uma guerra. A tribo inteira caiu em cativeiro. E a tribo inteira foi vendida pelos guerreiros vencedores. Embarcado, conheceu de perto os horrores do enterrado vivo no tumbeiro, tumba e catacumba. Onde caberiam 150 negros os traficantes embarcavam 400. O rei viu morrer mais da metade da sua gente embarcada, inclusive a esposa, a negra mais linda do seu reino, e dois dos filhos seus. Todos aqueles jovens, poupados pela guerra para um destino infinitamente pior. Aqui foram revendidos a um proprietário de mina de ouro, em Vila Rica, hoje Ouro Preto.

Tinha Francisco o seu dialeto natal. Destruíram-no. Foi proibido de falar em dialeto, quando lhe impuseram a língua portuguesa. Depois tiraram-lhe os deuses e o nome. Foi batizado como Francisco. A liberdade já se fora, nos embolados da vida. Ele podia sentar-se sobre um monte de cinzas, coçando as sarnas com um caco de cerâmica, e, tendo sido privado de tudo, doente, nu, humilhado, exclamar como Jó:

O Senhor me deu, o Senhor me tirou.

Bendito seja o nome do Senhor.

Apesar de tudo, ninguém conseguiu tocar no seu valente coração.

Houve uma corrida do ouro, quando se estabeleceram os garimpos nas Minas Gerais. Uma espécie de loucura coletiva arrastou multidões para a região, e durante 70 anos exploraram-se as minas. Meio milhão de negros baixaram ali, por conta de gente estonteada com a febre de riquezas. Aventureiros aos milhares encheram as vilas mineiras. Foram abandonadas as plantações e a carestia chantou um pé firme na terra outrora dadivosa.

A faina da garimpagem era perigosa. Além dos percalços naturais, havia o prejuízo à saúde, por estar o minerador de água até a cintura, quando minerava no leito dos rios. Sofria picadas de cobras, ataque de outros animais, insetos, que os havia em quantidade, febres palustres, malária. Súcias de escravos armados pelos brancos atacavam os mineradores para tomar-lhes as riquezas. E havia os feitores que, à suspeita de que algum negro tivesse engolido diamantes, mandavam dar-lhe clister de pimenta malagueta.

Os negros trabalhavam nus, ao sol, à chuva, ao frio, sob o chicote. Era grande a mortalidade desses trabalhadores. Roberto Simonsen avaliou em sete anos a sobrevida do escravo do garimpo. Não durou muito a mineração, porém, no dizer de Antonil, foi certamente a nossa maior aventura coletiva.

Pela primeira vez aparecia uma oportunidade para a liberdade, fora do quilombo. Cresceu extraordinariamente o número de negros de ganho e negros de aluguel, num trabalho sem o guante do feitor, e fora das vistas do amo. Cada um era responsável por seu trabalho e comportamento. E assim aumentou o número de negros e mulatos livres. Francisco, já então abreviado em Chico, alcançou do amo a licença de trabalhar para si próprio, uma vez por semana, no garimpo. Nesse dia, labutava como um doido, na bateia, frenético, teimoso. Quem sabe rezando?

Juntou dinheiro. Comprou a liberdade do filho, o único que lhe ficara. Ele próprio continuou escravo. E foi um grande alvoroço nos arraiais da sua gente esse primeiro passo dado em direção de uma vida mais digna. Os dois começaram a trabalhar juntos, exaustivamente, e ao fim de algum tempo conseguiram a carta de alforria do pai. Que festa, no garimpo! Que festa em toda Vila Rica!

Depois, os dois trabalharam por mais três. E cinco por mais três. E oito por mais cinco, e todos por todos, até que toda a tribo foi alforriada. Livres! Que língua, que pena, que pincel, poderá dar uma ideia de quanto ressoa essa palavra no coração dos escravos?

Botelho Netto
Foto de Botelho Netto

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