Ruth Guimarães
De todos os armamentos, de todos os venenos, de todos os recursos de destruição, nenhum é tão mortífero quanto a palavra. Ela que pode ser consoladora, blandiciosa, rica de ensinamentos, pode também ser um martírio e até matar.
Havia um rei, em tempos que já se foram, o qual, com inveja de renome de um sábio conhecido em todo o país por suas judiciosas lições, quis fazê-lo se atrapalhar na solução de um questionário.
- Ouça lá oh! Devorador de livros! É certo que você sabe todas as respostas?
- Nem todas, majestade. Mas as mais simples, sim.
- Pois então, aqui vai; Diga-me em três palavras o que é que poder ser a melhor de todas as coisas e ao mesmo tempo a pior delas.
- Majestade, é a língua humana.
- Como assim?
- Com a língua fique sabendo Vossa Majestade, eu canto as magnificências de minha Terra, a vossa bondade, a beleza das mulheres, a Caridade das almas bem formadas. Com a palavra rezo a Deus nas alturas. Com a palavra eu me comunico perfeitamente com os meus semelhantes a quem levo as boas novas e o consolo necessário. Com a palavra ensinam-se os filhos, louvam-se os bons e exerce-se a fraternidade. Com a palavra o homem participa do coro dos anjos, em hosana ao Senhor.
- É bastante. Realmente, a língua humana, veículo da palavra, é a melhor coisa que existe, entre todas deste mundo. E como pode ser a pior, sendo tão excelsa?
- Com elas destroem-se reputações, podem-se tecer ardis, estimular a traição, simular, distorcer, alternar, mentir, caluniar...
- Chega! Chega!... – bradou o rei.
E para não ser tentado a destruir a vida do sábio usando a língua para dar uma ordem terrível ao carrasco (tratava-se de um rei justo), bateu palmas chamando as bailarinas e os tocadores de alaúde:
- Vinde! Cantai! Louvai-me como a um soberano magnânimo, que acha a língua a melhor de todas as coisas.
O povo tem esquisitos nomes para a agressão feita com palavras traidoras, no anonimato coletivo; agressão que enxovalha individualmente, mas está na boca de todos, e faz com que o denegrido desça na escala social e decaia no conceito dos exacerbamento da crítica à socapa, malévola, individual é a calúnia. De todos esses graus da palavra negativa, o ápice é o escândalo, e o comentário à boca pequena, que destrói vidas.
Outro ataque anônimo da palavra é o trote telefônico. Esse vem a qualquer hora, sorrateiramente, entra nas casas, ataca na sombra e na noite, impune, triunfante, desconhecido, não tem o rebate da consciência, porque quem usa desses métodos não tem consciência. Leva a vítima, pela insistência maldosa, ao desespero, à ira descontrolada e até à loucura.
O nome que vem da família, da mãezinha que embala o nenê, é palavra que acaricia. È o chamado hipocorístico. Luíza se transforma em Luluzinha; Maria será Mariinha, Mariucha; Roberto crescerá como Beto; Eduardo se economiza em Edu; e assim por diante. No esporte vem lá um Cafu, um Tupãzinho, um Viola, um Garrincha, nada que ofenda ao próprio portador do apelido, nada que nos machuque os ouvidos.
Mas bem ao contrario disto temos a alcunha, nome que vem das ruas, que vem do povo.
O que dizer da alcunha?
Denunciadora da maldade do povo, a alcunha se reporta aos alijões da pessoa visada, a defeitos físicos, a atitudes bisonhas do ignorante e do canhestro, à deficiência intelectual, a doenças, à falta de sorte, a acontecimentos que envergonham, a escândalos, e tudo o que compõe a corte dos males ridículos.
Ela constitui um ataque contínuo, miúdo, mesquinho, espinho em carne viva, câncer da maldade humana, pungindo implacavelmente uma criatura sem defesa.
Um fato notório é que, quando atingido por ela e não se ofende, sem se importa de ser chamado por um nome de intenção pejorativa, o apodo não pega. Mas, se o apelido vinga e a pessoa protesta, reclama, então é que é um gosto chamá-lo por nome que não é o seu e que ele rejeita com tanta paixão.
Não falamos ainda do sarcasmo. Não falamos da ironia.
Não falamos ainda do palavrão, que fere, ofende, constrange.
O que leva uma criatura a escrever uma carta anônima? E não só escrever uma vez, porém muitas vezes, delatando fatos que se julgavam esquecidos ou escondidos, comentando deslizes, destruindo a paz das famílias, insinuando abjeções, espalhando a duvida e a cizânia. E talvez até, depois da carta escrita e encaminhada, esse indivíduo vá à casa da vítima, grávido de palavras hipócritas, lamentando os dizeres torpes da carta e sugerindo nomes para o incógnito que a escreveu. E gozando, é bom de ver, com a magoa e a ira que conseguiu despertar. Como devem rir interiormente, extasiadas com o seu feito essas hienas de que ninguém suspeita!
O que leva pois uma criatura a escrever uma carta anônima? Timidez não será. Nunca se soube de carta anônima para elogiar, para glorificar uma pessoa. Ela pertence à face sombria e negativa da palavra. É inveja, é ressentimento, é fracasso, é medo. O medo é o pai monstruoso de muitos pecados.
São muitos os nomes com quem se agracia o fenômeno de bisbilhotar e documentar a vida alheia, nos seus aspectos menos favoráveis.
O boato, notícia sem confirmação, aparece nos tempos de crise, de guerra, de convulsões sociais, de rebeliões, de greves. Refere-se aos fatos, sendo uma teratológica mentira social. Tem de comum com a lenda um fundamento verdadeiro que, nos contatos sucessivos, vai mudando de forma, até que por vezes se torna irreconhecível. Raramente se pode detectar de onde surgiu. O boato é prejudicial, por vezes ameaçador, leva o povo ao pânico, as tropas ao fracasso, provoca o desalento, e não tem conteúdo estimulante, nem otimista. Viceja, alimentando-se em solo rico de angustia, de insegurança, de medo, de rancor. Cresce como as pragas, as epidemias, não sendo possível controlá-la, até que, esgotada a sua cara explosiva, ele por si enfraquece e morre.
Na sua variante maligna, a língua é uma arma de destruição temível, seja escrita, seja falada. Arma de ódio. Arma contra os inermes. Arma de covardes.
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