quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Uma outra história de avinhado

Ruth Guimarães

Como já contei, o meu vizinho trouxe um avinhado da Bahia, que avinhado baiano etc., mas antes de ir, passou à noite pela nossa casa, para contar de seus planos, isto é, conversar à toa, para deixar claro para si mesmo o que desejava fazer. Meu marido não tinha chegado ainda e ele transbordou o coração para as outras pessoas que encontrou na sala, eu inclusive. E às tantas confiou-nos que ia trazer avinhado de lá. Devo dizer que a fala do meu vizinho é completamente baiana, contada, um pouco fanhosa; que ele inesperadamente abrevia umas vogais que usamos longas, e vice-versa. Que o tal avinhado entrou na conversa meio de supetão, sem ligação com os tópicos anteriores. E quem sabe eu não estaria prestando a atenção devida, tantas coisas nos solicitam o pensamento, ou julgava ouvir passos no saibro junto ao portão, a nenê dormia, mas desinquieta, havia coisas a resolver, e o tempo, oh! Deus, o tempo e a fala cantando, e as visões da Bahia, praias de mar de água roxa à tardinha, e os coqueiros, e o largo do pelourinho com pedras antigas que viram tantas coisas...

- Eu trouxe colares de conta de mucumã, de faveiro, conchinhas diz-que é de Iemanjá e da Nanã, que é o orixá da Senhora Santana. Balaios, peneiras, e outros trançados lindos, e figas de jacarandá, e...

E aí saiu a tal conversa do avinhado, que eu entendi veado.

- Seu Valter, o qu’é que o senhor disse que vai trazer?

- Avî-ado.

- Pra quê?

- Pra cantar.

- Veado canta?

- Ora, pois. Então não havia de cantar?

- Palavra que nunca ouvi falar nisso. Mas então cantam em ocasião muito especial..

O vizinho fez um ar de espanto, mas respondeu delicadamente:

- Não. Pelo contrário. Bichinho cantador está ali. É de manhã, de tarde, qualquer hora. A senhora não está acostumada a lidar com essas coisas. Eu sou do sul. Lá nós caçamos muito. Meus pais ainda moram lá. Vai dar pra trazer muitos.

- Despachados?

- Não, senhora. Comigo, no ônibus.

Matutei um bom pedaço e perguntei:

- Embalsamados?

Meu vizinho ergueu uma sobrancelha. Pareceu considerar se valia a pena responder e decidiu fazê-lo, em voz que me pareceu, por essas alturas, delicada, em demasia.

- E o que eu fazia com um avî-ado embalsamado? A senhora não me diz?

- Quem sabe pra enfeite?

- Enfeite?! – como me parecia desgostoso o meu vizinho! – Não. Eu trago vivo. E chegam vivos, se Deus me ajudar. A senhora sabe, eu tenho um transportador.

E esta! Primeiro disse que traria no ônibus, agora já tinha condução própria.

- Cabem muitos no transportador?

- Uns cinquenta.

- Bem grande, então!

- Assim. – Ele afastou as mãos até uns sessenta centímetros mais ou menos, e ficamos a olhar um para o outro, desconfiados. Um de nós não estava regulando bem. E quando estávamos nesse ponto crítico do diálogo, chegou meu marido.

- Estava contando aqui a sua senhora – falou o vizinho – que vou trazer avî-ados da Bahia.

- Boa ideia! – aprovou meu marido, e continuou com sua fala ressoante bem articulada, de professor: - Os avinhados têm boa cotação. Caso não os deseje para a sua coleção, pode vender, fazer presente...

Não achei nada melhor para dizer do que este breve e profundo comentário:
foto de Botelho Netto

- Ah! os avinhados!... Eles cantam, sabe?

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