quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Comidas e preconceitos (2)

Ruth Guimarães

Pois como ia dizendo, comida de quaresma era assim: verdura, arroz e feijão, bacalhau, e peixe do Paraíba. Peixão mais gordo, cada piabanha e cada traíra! e jaú dos pintados. Havia-os assados, com recheio de farofa gordurenta; fritos, em fatias douradas; à milanesa; cozidos; à brasileira, com molho de camarão; à baiana, com pimenta malagueta; moqueado, soltando um cascão tostadinho; lambari torrado no ponto; pirão de farinha de mandioca, bem ralinho, mexido no caldo com bastante tomate e pimenta de cheiro; e assim, principalmente a sexta-feira-da-paixão era festa, Deus que me perdoe! Nesse dia, depois de um jejum que ia do café preto sem mistura, de manhã, até depois do meio-dia, a mesa para o almoço era tão tremendamente impressionante, que não me atrevo a descrevê-la para não incorrer em impiedade. Essas glutonarias se acabaram, não por força de decretos do papa, nem de moralização dos costumes, mas pela inflação, que era mais sorrateira e mais poderosa. Acabou-se até aquela conversa brasileira, com que se justificava a hospitalidade a parentes que chegavam e nunca mais iam embora: panela onde comem dois comem três. Admito que semana santa no interior é tão magra quanto em São Paulo, mais magra ainda, pois que lá o peixe é vasqueiro embora os pescadores sejam muitos (pescadores de dar banho em minhoca), parcos os recursos e dinheiro nenhum. Mas ainda há algumas coisas por lá, que aqui não temos. Por exemplo, o feijão miúdo, um feijãozinho de gosto áspero, que se come somente na quaresma, e em principal na Semana Santa, em forma de viradinho. Depois do carnaval começam a aparecer no mercado e nas cestas dos verdureiros que negociam de porta em porta, os manojos de vagens do tal feijão. É comprar e descascar. Debulha à noite, em torno da mesa grande, na sala de jantar, ou na cozinha, enquanto se contam histórias ou se fala mal da vida alheia, coisa muito deliciosa! A outra comida é a paçoca feita de amendoim torrado, socado no pilão com farinha e açúcar. Na quinta-feira, santa, posso afirmar sem receio de me enganar que em todas as casa da minha terra, da mais rica à mais pobre, estarão comendo paçoca, como sobremesa no almoço, com banana nanica muito madura, nesta quinta-feira da sagrada paixão. E se eu estivesse lá, alguém bateria no portão, era a Carmela: dona Marcianinha mandou para a senhora! – e seria a mais deliciosa paçoca, muito úmida e cheirosa, numa tigela desta idade, coberta com pano de crochê de tia Binda. Marcianinha (Dona Marciana da Silva Ferreira, professora, se me fazem o favor, ó essas confianças!) bem sabe que também fiz a minha paçoca, mas a dela é uma receita que passa de mães para filhas, é fina, esfarinhada, flor, tem um sabor e um perfume, e uma cor, entre bege queimado e doce de leite, e desmancha na boca, como a ambrosia dos deuses.
foto de Botelho Netto

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